Pequena prosa do rio

Pequena prosa do rio

Quer saber, na verdade tenho inveja de tua imensidão, de tua fortaleza líquida, de tua força bem maior que a minha (...)

Paulo Mendes

publicidade

Vai meu rio, desce em tua correnteza de certezas, sempre em frente, sempre mais, vai meu rio de canto e desencantos, lamento e tristezas. Vai, beija a barranca e se larga no remanso, descendo, fugindo, se esgueirando por entre as matarias que te ladeiam, em busca de que? O que procuras, meu rio, eu que sempre te vi tão igual e diferente, o mesmo e cada dia outro. Que ânsias tu carregas nessas águas, que mistérios guardas em tuas entranhas? Como tu suportas viver assim, caminhando, rodando, correndo, nesse remanso infinito, quieto, calado, tão mudo? Junto a ti me sinto forte, mas na verdade sou muito frágil e medroso. Quer saber, na verdade tenho inveja de tua imensidão, de tua fortaleza líquida, de tua força bem maior que a minha, que sou um nada, só um campeiro, só um luzeiro na noite longa e profunda do esquecimento. 

Aqui fico, à margem, junto às pedras e aos juncais, como aqueles seres inertes que são feitos de barro e vertente, paralisados, mirando o infinito do céu e da vertigem. Minha alma, onde estará ela, nesta hora que venho aqui, de novo, rezar e te contar histórias tuas e tantas, contadas e recontadas por todos? Eu me resigno, aceito, reconheço minha insignificância, minhas saudades e desígnios. Poderia ter ido embora de mala e cuia, levando os mijados, e a foto da mãezinha, a faquinha de prata, as rédeas trançadas e o par de chilenas do pai. Mas fiquei apegado aqui para sempre, como esses umbus das planuras, solito, vago e parado, inerte, dando sombra pequena para uns paisanos de olhar de vidro. 

Hoje sou eu que te conto meus desenganos, tens um tempo para me ouvir? Estou velho, rio caudaloso, imponente e tão forte. Os anos passam, tu sabes tão bem, vão minando a gente. Creio que tu também te sentes assim, um pouco desgastado com o que te fazem, todos os dias. E essas lavouras ao teu lado, te sugando, te exaurindo? Mas tu, hein, não te mixas, segues tão altaneiro, resiste, nem dá sinais de tanto cansaço. Tuas margens estão tão devastadas, parecem os meus cabelos, tão ralos, com tantas clareiras, e tuas árvores cortadas. Escuta, são os bugios. Parecem estar querendo me dizer algo, mas não entendo. Tossem, se afogam, se lamentam. E os capinchos, não os vejo mais, meu rio. Diga-me, tu se sentes bem com tantos homens te atropelando, te maltratando? Ah, rio tão largo e comprido, que ao invés de separar sempre uniste, diga-me alguma coisa para que possa dizer ao meu povo. 

Eu sei, ninguém vai te atravessar duas vezes. Mas e eu, quantos vão ainda me magoar até eu desaguar do oceano, como tu fazes todos os dias? Confesso, eu tenho medo. Por isso fico aqui te mirando, pedindo teus conselhos. Está bem, não queres dizer nada. Ou será que tu me falas e eu é que não te ouço? Ah, não sejas cruel rio de minha infância. Estou indo, mas saiba, mesmo longe, é a ti que procuro nas madrugadas sombrias e solitas. Quem mais? Gente como eu fica sem carinho, fica sem abraços e beijo de prenda. Nasce e morre por aí, por essas bibocas. Pior, nem sabe onde vai parar. Tu, pelo menos, sabes que vai descansar nas águas do mar. Então velho rio caminhador, estou indo, a lida me espera. Um dia chegará meu fim, da vida paguei o preço, Deus saberá o que fazer de mim, e me dar aquilo que mereço... 

 


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895