Pinhão na chapa

Pinhão na chapa

Lá da cozinha vem o cheiro dos pinhões que sobraram torrados sobre a chapa. Todo o fogão está frio, assim como a casinha caiada (...)

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No início de junho, quando os ventarrões gelados começavam a fustigar o oitão dos ranchos, época em que os braços do arvoredo se desnudavam, com as folhas caídas pelo chão, os moradores do Cerrito, aquele esquecido amontoado de pequenos ranchos, chácaras e muitas granjas, na saída da Vila Rica em direção ao Passo dos Buracos, fechavam suas moradias, acendiam o fogo e se recolhiam cedo. Era o que fazia dona Rosina Cracco Montecastelli, a Tia Rosinha, como era conhecida desde que veio dos Campos de Cima da Serra morar com seu marido já falecido, ex-tropeiro e peão, o guasqueiro Artidor Inácio. A casinha branca seguia fincada no alto da Coxilha Grande, ali passando o Corredor dos Cavedon, onde antigamente se enxergava uma imensidão de campos verdejantes repletos de gado Charolês, como se a campina fosse o céu cravejado de estrelas. 

Tia Rosinha costuma acender o velho fogão a lenha Geral, com a chapa brilhando de tão areado, colocar uns pinhões sobre o ferro incandescente e ficar olfatando as sementes assando. Recordava o tempo de menina ajudando o pai na lida bruta junto com os dez irmãos, fazendo roça, plantando milho, mandioca, verduras, legumes, a criação de porcos, o pomar ... Depois, quando cresceu, foi numa festa do pinhão em São Francisco que enxergou aquele moreno indíático, de bombacha larga, alpargatas e uma boina preta sobre a cabeça de cabelos reluzentes. Os olhos negros de Artidor cruzaram com os azulados da gringa de cabelos cor de trigo. Ele ficara encantado, nunca havia visto uma mulher assim. Havia viajado de caminhão para buscar uns animais para a cabanha do patrão e deu um jeito de se aproximar da moça. Comprou um doce de pinhão com coco e ofereceu a ela, que ficou com as bochechas coloradas. 

Artidor voltou casado com Rosa lá dos pagos serranos. Comprou a chácara e se dedicou a fazer cordas, ofício que tinha aprendido ainda guri com seu Neto na Estância da Ramada. A esposa casou com a condição de que largasse as tropas. E Artidor jurou e cumpriu. Eram rédeas, cabeçadas de freio, bucais, laços e maneadores. Tudo. Vinha gente de longe encomendar um apero completo, pediam produtos requintados, com cabeçotes, argolas de prata e correntinhas de tentos. O homem era um artesão, um personagem saído de um conto de Simões Lopes Neto ou de um romance de Gabriel García Márquez. 

Dona Rosinha volta à realidade quando o rádio sintonizado na Guaíba, anuncia uma festa em São Francisco de Paula. Uma lágrima escorre pelo rosto da velha senhora nesta noite de sábado. Está só, a moça que lhe serve de companhia desfruta da folga. Os filhos estão longe “mas bem, graças a Deus”. Decide se deitar. Antes de apagar a luz, reza olhando para a fotografia do marido trançando um laço de 12 braças, e para outra foto, a do casal de filhos, ainda pequenos, e depois se estica. Ao longe, talvez na venda do Miro, um cachorro late. Lá da cozinha vem o cheiro dos pinhões que sobraram torrados sobre a chapa. Todo o fogão está frio, assim como a casinha caiada e humilde à beira da BR. O que antes era fogo, labareda, agora é apenas cinza. Dentro da casa só se ouve o ressonar da solidão. Lá fora resta o gemido do vento de junho. 

 


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