Reflexões

Reflexões

Vemos hoje o Estado transformado em um imenso lavourão de soja, sem cercas e aramados, sem capões de mato, sem riachos, sem nada

Paulo Mendes

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Pensei escrever umas frases bonitas dessas que se vão estrada afora amenizando dores, fechando cicatrizes, espalhando sensações e aromas de bálsamo cheiroso. Dessas que curam. Não farei isso hoje, me perdoem. Não falarei de gauchadas, de carreiras de cancha reta nas tardes domingueiras de antanho. Nada direi sobre tropeadas de várias luas, de São Gabriel a Pelotas; e de Tupã, Santiago e Quevedos paras as charqueadas de Júlio de Castilhos. Das antigas carreteadas que formavam formigueiros desenhando os caminhos do Pampa, de Rosário ao Quaraí, de Cacequi a Santana. Sei, o 20 de Setembro está batendo à porta, dando “Ôh de casa”, pedindo licença, ele e sua turma bem pilchada, com cavalos reluzentes, gritões, fazendo algazarras, soltando foguetes e escaramuçando, comemorando antigas façanhas mal-contadas. Eu devia me unir a eles e fazer elegias aos farroupilhas de 35, recontar episódios das guerras de fronteiras, saudar as lidas, enumerar heróis e exaltar nossas idolatradas tradições. 

Porém, estou prostrado. As recentes tragédias que se abateram sobre o Rio Grande levaram com suas enxurradas o que ainda restava de meu sentimento festivo. Ah, queridos leitores e leitoras, minha alma interiorana e este coração já cansado por bater lonjuras choram pelas dezenas de vítimas, conterrâneos, gaúchas e gaúchos de várias cidades que não verão mais seus entes queridos, viraram apenas uma fotografia na parede. Homens, mulheres, jovens e velhos que partiram, foram arrancados de nosso convívio pela fúria das águas em revolta. Nossa inaptidão para a prevenção, nosso despreparo ficou absolutamente claro e plasmado nas ruas e nas respostas de quem deveria saber o que dizer, mas, infelizmente, estava tão surpreso e estupefato como nós. Como cantar e declamar versos felizes e bonachões neste momento de tristeza e sofrimento para tantos lares? Principalmente no Vale do Taquari, uma região formada por gente trabalhadora, de calos mas mãos, e gente urbana, que mantém o sangue empreendedor dos antepassados imigrantes. 

Então, devemos refletir. O que estamos deixando para nossos filhos e netos? Onde está aquilo que recebemos, os campos verdejantes a se perder de vista, os rios, sangas e lagoas, tudo limpo, piscoso e cristalino? Para onde foram os animais nativos, as emas, os cervos, os ratões, as jaguatiricas, as lebres, os tatus e a passarada que fazia orquestrações ao amanhecer? Vemos hoje o Estado transformado em um imenso lavourão de soja, sem cercas e aramados, sem capões de mato, sem riachos, sem nada. As perdizes já morreram contaminadas, as cacimbas não acolhem mais os lambaris prateados que pescávamos nas manhãs de domingo. 

Acorda, gaúcho! Antes que a natureza ultrajada nos atire o golpe final. Está na hora de as pessoas com sensatez - imagino que ainda tenham muitas - se reunirem ao redor do fogo de chão e darem um basta nesta corrida desenfreada rumo à destruição de nossas vidas. Cadê nossas autoridades, cadê nossos planos e projetos para um crescimento sustentável? Às vezes, em sonhos, vejo um guarani montado num cavalo no alto de uma coxilha de pedras, de lança na mão, como a me alertar e a me apontar o caminho a seguir. Acordo envergonhado. Como pude, como pessoa, cronista e jornalista, não ter feito nada para evitar esta catástrofe? Agora, sou eu a cavalo. Quem vem comigo nesta empreitada? 


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