Suspiro

Suspiro

Trata-se, então de um lugarejo fantasma? Não, pelo contrário, a vida e a história estão plasmadas em cada coisa, (...) em tudo ali.

publicidade

O tempo parece dormitar dolentemente, impávido e queixoso, nos dias e noites que se esvaem devagar na Vila do Suspiro. Uma velha estação ferroviária, uma escola, uma igreja, um armazém, quatro ou cinco casas afastadas uma das outras e a estrada de terra que se perde no horizonte em direção às centenárias fazendas com cercas de pedras mouras. Os visitantes que decidem volta e meia parar são recebidos pelos latidos dos cuscos. Bem mais tarde, depois de muitos minutos, encontram uma alma. Não há pressa nenhuma no Suspiro, onde até as horas parecem ter lá suas conotações próprias. A pequena população parece flutuar num mundo pretérito, sem mais os apitos dos trens chegando e partindo da estação, sem os gritos dos tropeiros e os mugidos das antigas tropas que cruzavam o corredor. 

Trata-se, então de um lugarejo fantasma? Não, pelo contrário, a vida e a história estão plasmadas em cada coisa, objeto, edificação, taperas, em tudo ali. Alguns moradores, descendentes daqueles outros de antigamente, seguem vivendo no lugar com parcimônia e dignidade. Ainda mandam bilhetes escritos a mão, ainda esperam por caronas para irem à cidade e têm dificuldades para manejar celulares, tabletes e controles de televisão. Os jovens se mandaram há tempos e poucos ainda aparecem. Compradores e vendedores de gado, agora com automóveis e possantes camionetas, às vezes, param no antigo armazém. Vez por outra, surgem fotógrafos, pesquisadores, professores, historiadores, curiosos e até equipes de TV para gravarem episódios televisivos, minisséries ou cenas de novelas. 

A Vila do Suspiro se mantém ao longo dos anos envolta numa áurea de mistérios, causos e lendas. Nenhuma história é confirmada pelos remanescentes. Dizem que antes da Revolução Farroupilha, uma estância da região construiu um forno de cal e deste saía uma vasta fumaça branca. Quem via de longe, tinha a impressão que o lugar estava suspirando. “Nunca ouvi falar”, negam veementemente. Outros revelam que nos campos floresciam flores vermelhas e amarelas, a flor do suspiro, medicinal, boa para a confecção de chás que curam tosse, bronquite e resfriados. Nos finais de tarde, quando o sol descamba para o lado dos castelhanos, uma luz estranha e doce toma conta do Suspiro. Nesta hora, antigos moradores, até o degolado no perau, se preparam para voltar. 

Por fim, Maria Valeriana, a Zinha, passava as tardes à janela, esperando por um moço que uma tarde chegou pelo trem, ficou uma semana na vila e prometera voltar. Todos os dias, Zinha se arrumava, colocava uma flor no cabelo e aguardava. Esperou tanto tempo que os anos passaram e ela, a casa e o lugar envelheceram sem que o mancebo retornasse. A velha Zinha não arrefeceu e se manteve confiante. Dizia que recebia mensagens em sonhos de seu amado. Foi então que num sábado de primavera, Zinha enxergou ao longe um gaúcho bem montado num cavalo tordilho, de aperos prateados, pala de seda voando ao vento, chapéu preto de aba larga e copa batida galopando em meio à polvadeira. O vulto veio em direção à janela e quando esbarrou o pingo, apeou e tirou o chapéu para cumprimentá-la, a velha senhora não resistiu e caiu sobre o assoalho apodrecido da sala. Foi seu último suspiro.

 


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895