Tio Darinho volta ao mar

Tio Darinho volta ao mar

Foram anos alegres, felizes, namorou muito, aprendeu a pescar, vivia no mar em meio a barcos, redes, remos e peixes, muitos peixes

Paulo Mendes

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As visões se repetem nos quadros chumbados e gélidos de junho. As manhãs alvas, as tardes gris e as noites mais escuras que essas recordações que chegam acolheradas. Neste dia 13, Santo Antônio, a Vila Rica parece dormir aqui para o lado do antigo Lagoão, onde Tio Darinho descansa sobre uma cama simples de ferro no quartinho dos fundos da casa da filha, que, neste momento, já saiu para o trabalho. O silêncio do arrabalde é quebrado pelo latido dos cães que vivem pelas ruas em busca de restos de comida.

Tenta ralhar, mas a tosse o interrompe e decide apenas levantar e olhar pelo vão da janelinha de tábuas. Ao longe, as lavouras com pastagem de inverno parecem formar ondas, as mesmas que ele domava sobre os barcos na Praia do Rosa, no Sul catarinense, durante os arrastões, quando o vigia, no alto do morro, sinalizava um corso de tainhas em tantos invernos passados. Elas saíam dos estuários gaúchos para desovar em águas doces e quentes ao Norte.

Dário era jovem naquele ano que pegou o trem para Porto Alegre, depois uma carona de caminhão para Santa Catarina. A ideia viera ao olhar uma revista de surfe que achara numa granja, deixada no meio de defensivos agrícolas, adubos, cal, ureia, sacos de sementes mofadas, latas de querosene, galões de diesel, restolho de milho, cheiro de urina de ratos e gambás. Não tinha nada a perder, pensara consigo mesmo. Era um guri com poucas afeições às lidas de campo e lavoura, poucos parentes, solito no mundo. Queria conhecer o mar, entrar naquela imensidão que diziam ser parecida com o Pampa estendido. E seria uma bela aventura noutro lugar onde a vida pudesse olhá-lo com olhos mais ternos. 

Foi o caminhoneiro quem sugeriu conhecer o Rosa. “Praia de gente jovem, tem muito hippie por lá”, dissera-lhe o senhor de cabelos brancos e sotaque fronteiriço. “Gurizada parecida contigo, cabelo comprido, roupas coloridas, vais te entreverar.” E foi isso mesmo. Da rodovia até a praia, na época, um trecho de estrada batida, pegou carona com um casal com um fusca enfeitado. Eram os tais hippies que tanto falavam, mas Darinho nunca havia visto um. Eles gostaram de seu jeito simples, interiorano, um pouco ingênuo, mas alegre, honesto, divertido e autêntico. Não tinha medo ou vergonha de perguntar o que não sabia. Fez amizade rápida com eles e seus amigos. Ah, sem falar no mar, um espetáculo. 

Foram anos alegres, felizes, namorou muito, aprendeu a pescar, vivia no mar em meio a barcos, redes, remos e peixes, muitos peixes. Vez por outra, conversava com algum gaúcho de passagem, tomava uns mates, pouca coisa. Tinha seu barraco no morro, perto do galpão dos barcos. Porém, passados alguns anos bateu uma saudade atroz, e Darinho decidiu voltar para o Rio Grande. Quando retornou à Vila Rica estava tudo mudado, não encontrou mais os amigos, as ruas estavam diferentes. Foi trabalhar na cooperativa de cereais, casou, teve uma filha, ficou viúvo e, agora, está aposentado e doente. Ao voltar à realidade, o velho Dário sente um calor no corpo e se estica na cama. No inicio da noite, ao chegar em casa, a filha encontra apenas o corpo do pai. A vida dele voava por outras plagas, branca, como uma gaivota na praia. 


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