Trabalhar com gosto

Trabalhar com gosto

Cresci assim, no meio da delicadeza do simples, que raras vezes encontrei em outros pagos, essas querências de asfalto e concreto

Paulo Mendes

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Lá de onde vim éramos trabalhadores. Tínhamos as mãos calejadas de cabo de enxada, de machado, de picão, de serrote, de rédeas, de laço trançado, de facão, de cabo de vassoura, de colheres de madeira, homens e mulheres – vivíamos na luta bruta. Levantávamos cedo, ainda escuro, antes de clarear o dia, todos nós, os desassistidos, os ignorados, os sem voz, os sem nada. Nem nos censos aparecíamos, estávamos fora das estatísticas, sem energia elétrica, sem água potável, tínhamos que nos alumiar com lampiões a querosene. Às vezes, sem o combustível, só com tocos de velas. E trabalhávamos todo santo dia, um sim, outro também. Cresci assim, no meio da delicadeza do simples, que raras vezes encontrei em outros pagos, essas querências de asfalto e concreto. Eu, meu irmão e os outros sobrevivemos. Muitos se foram, mas estou aqui para contar. 

Então conto e reconto. Eram campeiros, arrabaleiros, changueiros, poucos com trabalho fixo, ninguém com direitos, férias, fundo de garantia. Buscavam um dinheiro escasso naqueles bolsos vazios e corações tão cheios. Eu os atendia, atrás do balcão engraxado de banha, com cheiro de querosene e de fumo em rolo. Compravam um quilinho disso, um quilinho daquilo, uns caramelos para as crianças e, por fim, uma garrafa de canha pura para afogar as mágoas. Dona Mirica, minha mãe, ensinava. “Pobre precisa beber, meu filho, leva a vida muito triste.” Não sei se compreendia, mas fazia cara de quem percebia a situação. Depois ela remendava: “Nunca se entregue para a cachaça, é china maleva, olha o fulano, o sicrano”, e me e apontava os maiores borrachos que pisavam na venda. 

Tive outro irmão, mais velho, que levou um trator para São Borja. Ele foi trabalhar para um fazendeiro e lavoureiro. Lá se fez homem trabalhando de sol a sol, comprou terras, criou gado, mas depois perdeu tudo em carreiras e na bebida. Ter dinheiro não era para ele. A vida é tão injusta, mas é a vida que temos para viver. Ela vai nos mostrando as coisas e precisamos nos adaptar a ela do jeito que dá. Meu pai adotivo, seu José Mendes, perdeu o pai aos 14 anos e, como filho mais velho, foi trabalhar para sustentar a mãe e os treze irmãos. Dona Mirica trabalhou desde adolescente em “casa de família”, depois casou e se tornou bodegueira de campanha. Seu comércio era legalizado, pagava impostos e se aposentou pelo antigo INPS. 

Exemplos de trabalhadores nunca me faltaram. Mas trabalhar, meus amigos não é tudo. Precisamos fazer aquilo que gostamos, ter prazer, trabalhar com alegria e vontade. “Quem trabalha por gosto nunca se cansa”, dizia o velho Mendes. Eu sabia desde guri que seria jornalista, contador de histórias. Hoje, já pressentindo a chegada da parte final da vida, sinto-me realizado. Sempre fiz o que gostava e, quando não gostei, serviu de aprendizado. Vi sempre o lado cheio do copo. Fui, sou e serei sempre otimista. Um dia, vendo a morte chegar, falei pra mim mesmo: “Não te mixa, te criaste quebrando geada, passaste dificuldades, diz a ela que não será hoje.” Disse. E estou aqui, vivo, trabalhando como sempre, desde o tempo de bolicheiro e carroceiro. Esta talvez tenha sido minha melhor empreitada, sou trabalhador. Já estou até mandando meu currículo para São Pedro. Deve ser chato passar a eternidade sem fazer nada. 


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