Uma nova tropa

Uma nova tropa

A vida, meus amigos, é uma só e se suspeitarmos que podemos de alguma forma mudá-la, não podemos perder tempo.

Paulo Mendes

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“Tropa crioula de gado sem costeio, de pelo 
desigual...Tropa de gado que não viu mangueira 
nem laço jamais...” (Gado xucro, Vargas Netto)

Quase sempre, nessas invernias do mês de julho, eu volto aos meus tempos de bolicheiro, lá na Vila Rica. É um tempo já tão distante, perdido nas brumas do passado, mas que se torna presente, porque o que mais se ausenta é o que me aproxima de forma profunda ao que fui. O que sou. E o que sou? Sou algo e alguém que nunca quis ser costeado, nunca quis vergar ao laço trançado de doze braças, seguir calado rumo ao matadouro. Quanta tropa vi passear em frente ao bolicho de tábuas beira de estrada, abanando para os tropeiros que tiravam o chapéu, montados em cavalos suados. Eram baios, tostados, zainos, malacaras, gateados, ruanos, picaços, tordilhos de todo pelo. A tropa também variava de pelo. Eu gostava dos bois brasinos, mas havia os salinos, os jaguanés, os bragados, os pampas, os fumaças, credo, eram tantos... 

Eram bichos de pelos desiguais como nós os pobretões de corredor, por isso um dia me decidi que não ia fica ali e me transformar numa lavoura de soja na futuro. Eu poderia ser o que quisesse, mas por minha vontade, não ser pealado, não aceitar cabresto ou mangueira. Era possível me transmutar? Eu sabia que sim. Por isso, um dia, subi em um vagão de trem e ganhei o mundo. Conheci outros lugares, tantas pessoas e situações. Para poder estar aqui contando com devoção e presteza tudoo que vi e ouvi. Tenho certeza que vim ao mundo para isso, reatar, mostrar que é possível. Será que outros fariam se eu não fizesse? Eu não quis correr o risco e aqui estou, feliz, sem mágoas, sabendo que será sempre assim. E penso seguir enquanto tiver forças.

A vida, meus amigos, é uma só e se suspeitarmos que podemos de alguma forma mudá-la, não podemos perder tempo. Principalmente, se ela não estiver boa, se estiver precisando de ajustes. E, claro eles estão sempre li na nossa frente. Dia desses, ao voltar à minha terra, vi que tudo mudou. Não existem mais os campinhos de futebol, as canchas de bocha, os bolichos, as vendas, as fazendas de criação de gado. Infelizmente, o monopólio da soja tomou conta, tudo virou uma imensa lavoura. Dizem que é o progresso e que produz dinheiro, riquezas. Preferia que tivéssemos diversidade, várias culturas, não dependência econômica de uma commoditie. Eu espero que logo isso tudo mude. 

E agora, um último pedido neste causo de tropa e de utopias: não sejamos gado passivo que chega babando ao matadouro. Que não aceitemos açoites nem ferro em brasa. Vamos meter os dentes no freio e correr livre nas coxilhas, como um potro sem dono, sem marca ou sinal. Porque não existe coisa mais linda no mundo do que sentir na cara o vento da liberdade. Para isto nascemos, sermos felizes sermos livres, sermos únicos, sermos humanos que se interessam por melhorar os caminhos. Sermos diferentes na igualdade, sermos iguais nas diferenças. Lembram-se dos pelos? Eles não importam, só importa a nossa verdade e a vontade de transformar o destino. Esta é a nova tropa que eu gostaria de repontar, a tropa dos homens sem medo. A tropa nova que semeia da esperança. 


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