"Somos uma sociedade construída a partir de contrastes que nunca foram superados"

"Somos uma sociedade construída a partir de contrastes que nunca foram superados"

Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza apresenta estimativas para a desigualdade de renda no Brasil ao longo de nove décadas

Flavia Benfica

Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza é referência no estudo da desigualdade no Brasil

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Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, se tornou referência no estudo da desigualdade no Brasil. Sua tese de doutorado pela Universidade de Brasília (UNB), defendida em 2016, deu origem ao livro “Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos do Brasil – 1926-2013”, que conquistou no mês passado o Prêmio Jabuti 2019 nas categorias Melhor Livro e Humanidades. Em 2017, o trabalho já havia arrebatado os prêmios Capes de Melhor Tese em Sociologia e Anpocs de Melhor Tese em Ciências Sociais.

Pesquisador do Ipea na diretoria de políticas e estudos sociais e doutor em Sociologia, Souza confeccionou no livro um apanhado detalhado, no qual tomou por base dados disponíveis do Imposto de Renda de Pessoas Físicas (IRPF), apresentando estimativas para a desigualdade de renda no Brasil ao longo de nove décadas. O trabalho é apontado como a mais longa e completa série histórica sobre desigualdade para o país até o momento. Dados que, agora, ele está compartilhando com Marc Morgan, da equipe de Thomas Piketty, que desenvolve estudos sobre a desigualdade global. Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista que Souza concedeu ao +Domingo.

É possível, a partir dos dados que o país possui hoje, projetar alguma queda significativa na desigualdade de renda no curto prazo?

Do ponto de vista apenas da renda, sou um pouco pessimista. É difícil antecipar que possa ocorrer uma grande mudança. Primeiro, em função de nosso histórico. Nunca conseguimos mudar muito radicalmente. Os países, no geral, têm esta dificuldade. Por outro lado, há um prognóstico bem mais positivo em algumas outras situações, como os serviços públicos. Temos conseguido melhorar e ir universalizando. Falta muita coisa, mas é um ponto sobre o qual é possível ser mais otimista.

É possível estabelecer comparativos, existem outros países com situação semelhante que conseguiram ‘uma virada’?

Ninguém conseguiu sair de onde está o Brasil para um ponto de chegada europeu. Este grau de mudança não é impossível, mas certamente muito difícil, a fórmula precisa ainda ser inventada. Há resistências políticas e sociais muito fortes. É fato que diversos países hoje desenvolvidos já foram muito desiguais. Porém, entre os que conhecemos melhor, as mudanças vieram de forma abrupta, ou em função de uma guerra, ou de catástrofes. Os casos mais comuns ocorreram em função da Segunda Guerra, em países nos quais aconteceram grandes mudanças e se estabeleceu um novo tipo de equilíbrio. França, Alemanha, Estados Unidos eram muito desiguais no início do século 20, passaram por algum choque ou destruição, e acabaram mudando. Evidente que não é desta forma que desejamos que a desigualdade diminua no Brasil ou em qualquer lugar do mundo.

Por que é tão difícil diminuir a desigualdade no país?

O Brasil e vários outros países da América Latina são resultado de desigualdades enraizadas há séculos. Somos uma sociedade constituída a partir de certos contrastes que nunca foram superados. Quando falamos disto, a escravidão é a primeira coisa que vem a mente porque foram séculos do regime mais brutalmente desigual possível. Ao mesmo tempo, em uma sociedade, há um conflito distributivo natural, a todo o momento diferentes grupos sociais estão lutando para melhorar sua situação e, na democracia, esta luta acontece em condições bem desiguais. Em função desta combinação, a reprodução da desigualdade acaba sendo favorecida. Na prática: uma família rica, por exemplo, pode investir na garantia do futuro de um filho um valor superior ao PIB per capita do país. Não é possível comparar uma família com condições de investir R$ 5 mil, R$ 10 mil em educação com o investimento que uma que recebe salário mínimo pode fazer nesta mesma tentativa. Além do dinheiro propriamente dito, existem as conexões, os contatos, o patrimônio acumulado, o capital político, a força do lobby, o grau de organização, uma série de outras dimensões que contribuem para a reprodução da desigualdade.

Existe em certa medida uma naturalização da desigualdade no Brasil?

Certamente, para quem está na parte de cima, existe. Para quem está na parte de baixo, em muitos casos, também. Uma parte das pessoas tende a construir vários discursos para justificar a situação, que versam sobre esforço e mérito. Mas, em uma sociedade na qual as pessoas partem de lugares tão diferentes, como avaliar o que é mérito e o que não é? O que é esforço? É claro que quando um determinado grupo faz seu lobby, não deseja aumentar a desigualdade. O que quer é melhorar sua própria posição. Mas, como os grupos têm pesos muito diferentes, na prática a reprodução acaba acontecendo. O exemplo mais claro e visível é quando há reajuste para algumas categorias do funcionalismo público. Todo mundo grita. E quem grita mais alto ganha.

As resistências ao Bolsa Família integram este contexto?

O Bolsa Família é um programa excepcional, se transformou em uma referência mundial, é muito modesto do ponto de vista do orçamento e parte do princípio de que o país é rico o suficiente para garantir que ninguém precise passar por um grau tão alto de sofrimento e privação. Mas sempre que o Estado tenta redistribuir, há reação. Porque redistribuir, por definição, significa que você vai arrecadar dinheiro de determinado grupo e tentar direcionar para outros. O problema é conseguir fazer isso em várias dimensões ao mesmo tempo. Existem muitas coisas, até firulas técnicas, que passam despercebidas, mas que servem para reproduzir muito da desigualdade. Falo especialmente de subsídios, desonerações, departamentos privilegiados. Não são todos ruins. Mas, por exemplo, a obtenção de condições diferenciadas a setores ou empresas a partir do argumento da geração de empregos ou promoção do crescimento. Em alguns casos, ela ocorre. Mas, em muitos, tende a ser apenas outra forma de conceder condições especiais a determinados setores do empresariado. Infelizmente, não é o tipo de coisa que se consegue mudar no atacado. Todo mundo é capaz de entender o Bolsa Família como uma transferência mensal de dinheiro para uma família pobre. É mais difícil em relação a vários tipos de subsídios e tratamentos privilegiados.

Suas pesquisas mostram que a queda da desigualdade comemorada no período imediatamente anterior a 2015 não foi tão intensa quanto se imaginava. Como se chegou a esta conclusão?

As principais fontes de dados então disponíveis indicavam uma queda da desigualdade sem precedentes no Brasil, com crescimento da renda e diminuição da desigualdade, realmente os mais pobres melhorando bem mais rápido do que o conjunto. Mas, a partir de 2013, o maior acesso aos dados do imposto de renda nos permitiu constatar que na década passada basicamente a renda de todo mundo cresceu, que com certeza a metade mais pobre cresceu rápido, até mais rápido. Mas que os muito ricos, o 1%, 5% do topo, que têm sua renda melhor captada a partir dos dados do IR, também melhoraram muito. Foi como se os extremos tivessem crescido mais rápido do que o meio. Em termos absolutos, todo mundo melhorou. Mas, em termos relativos, quem estava no meio, ou entre os mais pobres e os muito ricos, acabou ficando um pouco para trás. A consolidação destes dados mostrou que houve queda da desigualdade, mas muito menor do que acreditávamos. Ela é um terço ou um quarto do que achávamos que era.

Nos últimos anos a classe média no Brasil ficou comprimida, como ocorre também em outros países? Você concorda que esta compressão gerou desdobramentos políticos, como o retorno de alternativas populistas?

O que é possível dizer é que, no passado recente, a fatia da renda total que estava nas mãos do 1% mais rico não mudou e certamente não caiu. O que o país avançou não afetou nem em termos absolutos e nem em termos relativos a fatia dos muito ricos. Sobre a classe média, pensando em definições puramente estatísticas do que ela seria, observamos que a distribuição que houve foi dos estratos intermediários para os mais pobres. Mas tenho cautela em projetar isto sobre a resposta política das pessoas, porque entre a realidade objetiva e a forma com o as pessoas reagem politicamente há vários abismos.

No Brasil, os 10% mais ricos são de fato ricos?

Para nossa definição da vida cotidiana, com certeza não. Porque, pela classificação em vigor, uma pessoa que ganha algo em torno de R$ 5 mil ao mês já estaria entre os 10% mais ricos. E ninguém se acha rico com um rendimento destes. Mas isto é muito em função de o Brasil ser um país de renda média e nós termos uma tendência a nos compararmos com os países ricos. E em países mais desenvolvidos, como os Estados Unidos e outros, a renda per capita é quatro vezes a nossa. Os 10% tende a ser um grupo grande e heterogêneo demais para tratar como uma coisa só. No Brasil a renda está tão concentrada nos muito ricos, pelo menos nos muito ricos para o nosso padrão, que os 10% ou 20% mais ricos constituem um recorte grande demais, que pode acabar as vezes mais confundindo do que ajudando. A própria definição de classe média é muito fluída. Na verdade o mais comum no Brasil é definirmos como classe média uma família que seria classe média para o padrão norte-americano, a família do comercial de margarina, com dois carros, cachorro, casa grande, algo assim. Isto já não se aplica aos Estados Unidos. Para o padrão brasileiro, um país muito mais pobre, nem se fala. Por outro lado, aqui até quem é bem rico diz que é classe média.

Por que pode haver diminuição da pobreza sem diminuição da desigualdade?

Porque o padrão mais comum é medir a pobreza ou a extrema pobreza tendo como referência um valor fixo. Então quando a economia cresce e a renda dos mais pobres cresce, a pobreza vai cair. Mas se a renda dos mais ricos estiver crescendo mais rápido, a pobreza pode cair e a desigualdade aumentar. É um pouco o que está acontecendo na China e na Índia. São países que estão crescendo muito rápido, no limite está todo mundo se beneficiando, a renda de todos está subindo em algum grau, mas a desigualdade está aumentando. Isto significa que o crescimento dos mais ricos é mais rápido.

Da mesma forma, melhora na economia e aumento no PIB podem não gerar queda automática da desigualdade.

Correto. Pode haver um crescimento da economia provocado inteiramente pela melhora de vida dos mais ricos. Se os mais ricos começarem a melhorar e o resto da população ficar estagnada, o PIB vai melhorar e a desigualdade estará aumentando.

É o que ocorre no Brasil neste momento?

Os dados que temos, que vão até 2018, mostram que no ano passado, em relação a 2017, o crescimento da renda basicamente só aconteceu na metade mais rica da população. Os mais pobres ficaram parados ou até tiveram alguma perda.

Que medidas o país pode adotar para diminuir a desigualdade?

Há três medidas que não resolveriam o problema, mas seriam um passo inicial importante. A primeira é a mudança no sistema de tributação. Temos uma carga tributária que depende muito dos impostos sobre o consumo, indiretos, que em geral arrecadam muito, mas com o mesmo grau de incidência sobre pobres e ricos. Na outra ponta, arrecadamos pouco de impostos diretos, que são os mais progressivos, como o imposto de renda. Poderíamos, no mínimo, melhorar a composição da carga tributária, diminuindo os impostos sobre o consumo, o que em tese iria diminuir o custo de vida em geral, e compensar aumentando a cobrança no IR. A segunda é que poderíamos, de imediato, aumentar transferências do Bolsa Família, criar novos benefícios, a ideia de criar um benefício universal para as crianças (da unificação de benefícios) é sensacional. É possível no curto prazo, tem impacto imediato sobre o bem estar e desdobramentos futuros. E, terceira, como falamos, revisar gastos, tratamentos especiais, vantagens, subsídios. Passar um pente fino, sem caça as bruxas.


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