A importância da mediação

A importância da mediação

Por Felipe Samuel

Felipe Samuel

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Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4), o desembargador Francisco Rossal de Araújo afirma que a reforma trabalhista tem prós e contras, mas avalia que o principal ataque aos direitos trabalhistas é a flexibilização da contribuição sindical. Natural de Alegrete, ele diz que é preciso punir severamente pessoas que não respeitam a dignidade do trabalho humano e afirma que os direitos trabalhistas não trazem prejuízo aos empregadores. “Direitos trabalhistas sólidos trazem mais lucro para os empregadores”, destaca. Rossal ingressou na magistratura em 1990, quando tomou posse como Juiz da 4ª Região Trabalhista. O desembargador assumiu a presidência do TRT-4 em 2021.

A desigualdade social é um legado do período colonial. O senhor afirmou que países que têm melhor distribuição de renda são também os que têm o direito do trabalho mais desenvolvido, direitos sociais e previdenciários desenvolvidos e melhor negociação coletiva. Qual o papel da Justiça do Trabalho para reduzir esse abismo social no país?

Normalmente, vemos o fenômeno econômico sobre o ponto de vista de eficiência na produção. Como vou produzir mais com o menor custo possível. Isso aumenta o lucro. Se gasto menos para produzir produtos com eficiência, tenho maior margem de lucro. Outro fenômeno específico é como alocar recursos para desenvolver eficácia alocativa, onde colocar investimentos. As questões como, por exemplo, a diferença entre a metade sul e norte do RS. Preciso fazer alguns investimentos estratégicos para que eu tenha um desenvolvimento e igualitário. Isso no que diz respeito geograficamente ao desenvolvimento econômico.

Mas o segredo de tudo isso está na distribuição da riqueza. Os dois primeiros, eficiência produtiva e eficácia alocativa ativa, estão ligados à criação da riqueza, como criar a riqueza da maneira mais rentável possível. Não consigo criar riqueza rentável, se não me preocupar com a distribuição justa da riqueza, quem vai comprar esses produtos? Aí entra o salário. E o salário entra no emprego digno. Produzo para vender, mas para quem vou vender se a população está na miséria? Então, o segredo está no equilíbrio. Tão importante quanto criar a riqueza é distribuí-la de forma justa, que nós chamamos de justiça distributiva. Aí entra em uma função fundamental do Direito do Trabalho e das normas trabalhistas que é promover uma distribuição equilibrada de riqueza para que todos ganhem. Ao contrário do que muita gente pensa, direitos trabalhistas não trazem prejuízo aos empregadores, direitos trabalhistas sólidos trazem mais lucro para os empregadores, porque eles podem vender mais, tem maior mercado consumidor e mercado com poder aquisitivo maior. Todos os países que se desenvolveram levaram a população junto. Tu não desenvolves um país apenas puxando o lado puramente econômico, tem que levar também o social.

Durante congresso em março, a União Geral dos Trabalhadores do RS (UGT-RS) fez um balanço do impacto da reforma trabalhista. Para a entidade, a reforma iniciada no governo Michel Temer tirou direitos, desfigurou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e produziu mais adversidades no mundo do trabalho. Qual avaliação do senhor?

Vou usar uma expressão bastante conhecida. Depois do inverno vem a primavera. Acho que a reforma trabalhista teve prós e contras. Não sou um radical crítico da reforma trabalhista, embora tenha bem claro que ela retirou vários direitos consagrados, até mesmo pela evolução jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho, como por exemplo, horas in itinere (tempo que o colaborador gasta ao sair de casa e chegar no trabalho e ao retornar para sua casa) e incorporação de gratificação recebidas por mais de 10 anos. Há uma série de flexibilizações, mas também tratou de temas que não estavam na CLT, como o teletrabalho, a representação dos trabalhadores em empresas de mais 200 empregados, ou seja, a própria flexibilização, a questão do legislado, negociado, abre um leque de negociação. O principal ataque que feito aos direitos trabalhistas no direito coletivo é a flexibilização da contribuição sindical, que afetou enormemente o financiamento do sindicatos, tanto dos empregados quanto dos empregadores. Sem um movimento sindical forte, com todos os problemas que possa ter um movimento sindical, não tem diálogo social. O que se a vizinha não é uma pura e simplesmente revogação da reforma, é uma evolução, e acho que essa é a grande comemoração que tem que ser feita. Voltamos a ter disposição para o diálogo, que perdemos nos últimos anos. Acho que ainda não é momento de celebrar conquistas, infelizmente, mas talvez o inverno tenha passado e estejamos voltando a lançar raízes para termos flores e frutos um pouco mais adiante. Tenho esperança de que possamos voltar discutir essas questões de melhor distribuição de riqueza no país. E acho que nesse papel o movimento sindical, tanto dos empregados quanto dos empregadores, tem um grande desafio. Senão, nós não vamos nos desenvolver, o país não vai ter futuro, se ele não souber dialogar com interesses antagônicos.

Tenho que fazer um elogio à instituição que represento. A Justiça do Trabalho soube interpretar a reforma trabalhista da forma a causar o menor prejuízo possível. Sofremos muitas críticas em relação a isso, mas acho que a Justiça do Trabalho andou bem, foi equilibrada. Em alguns temas confirmou alguns aspectos da reforma em outros declarou a sua inconstitucionalidade e como deve ser o Poder Judiciário, independente e justificando as suas decisões. A grande questão do que está por vir é uma tarefa da própria sociedade. Os trabalhadores e os empresários e o governo é que vão ter que traçar os novos rumos. Ao Poder Judiciário cabe estabelecer as garantias mínimas e estabelecer o diálogo social como eu referia anteriormente.

O que o senhor espera do futuro do trabalho?

Sei que a Justiça do Trabalho tem inimigos, tem gente que não gosta da Justiça do Trabalho. Como é que nós podemos justificar a existência da Justiça do Trabalho? Além da questão de que tem que ter um espaço de diálogo social e de fazer justiça social no país, senão o país não se desenvolve, o que justifica a existência de uma instituição é o seu funcionamento. Ela tem que funcionar bem, esse é o nosso compromisso. Não há um dia sequer que a nossa preocupação não seja essa: como fazer a Justiça do Trabalho funcionar bem para a sociedade. Se ela funcionar bem para a sociedade, ela tem uma longa vida. Acho que esse é o papel do presidente, incentivar os juízes a ter cuidado, atenção, respeito com as partes, tratamento igualitário, imparcialidade, e resolver rapidamente os conflitos sociais e de forma justa e equilibrada. Acho que isso por si só justifica a existência de qualquer instituição.

Quais são os nossos grandes desafios? É claro que tem coisas que nos preocupam a todos, não só no campo da Justiça. Primeiro é a Inteligência Artificial. Essa velocidade das mudanças vai chegar em muitas profissões. Até então nós falamos em Inteligência Artificial suprimindo etapas de trabalho braçal, agora não, vamos chegar em profissões de criação intelectual em que eu já não sei o que é humano e o que não é. Parece ficção científica, mas já está aí. Isso envolve, por exemplo, o trabalho de advogados, engenheiros, arquitetos, médicos, contadores e juízes. Então, esse é um grande desafio, que não é específico da Justiça de Trabalho, mas da vida humana, nós vamos ter que voltar a falar o que é trabalho humano. Trabalho humano não é apenas uma mercadoria, mas com esses desafios da Inteligência Artificial, vamos voltar a uma discussão mais profunda. O que é humano? O que é existência? O que é a consciência de passado, presente e futuro? Essa inteligência é só nossa, de seres biologicamente de carne e osso, ou também pode ser de seres artificiais? Então esse é um desafio geral. O desafio específico da Justiça do Trabalho é interpretar a realidade laboral, as evoluções tecnológicas, as mudanças no comportamento das pessoas, e poder se justificar na seguinte maneira: enquanto existir trabalho, forma de modificar, transformar mercadorias ou criar serviços, existirão regras. Enquanto existirem essas regras existirão conflitos, porque regras são feitas para solucionar conflitos. E alguém terá que solucionar esses conflitos. Então, esse é o desafio da Justiça do Trabalho, é ir se adaptando aos novos tempos.

Durante a pandemia, a Justiça do Justiça do Trabalho enfrentou uma série de desafios e teve papel importante através das audiências de mediação. Em entrevista no final de 2021, o senhor informou que em 2020 foram beneficiados pelas mediações mais de 480 mil trabalhadores. E agora, quais são os desafios pós-pandemia?

Sobre as mediações eu poderia dizer basicamente o seguinte: a pandemia que em si só é uma tragédia universal, não é um fenômeno específico do Brasil e, apesar do lado ruim, trouxe algumas coisas positivas. Com a desorganização trazida pela pandemia, econômica, social, de hábitos, houve um aumento de demandas trabalhistas, porque se tinha que saber como continuar produzindo, como continuar atendendo clientes diante de um quadro que exigia algumas medidas drásticas, como o fechamento de locais para proteção da saúde de todos. Em primeiro lugar, estávamos preparados, já havia tradição de diálogo social na Justiça do Trabalho. E o que eu chamo de diálogo social? A Justiça do Trabalho não é só a reclamatória trabalhista individual da senhora que foi despedida da padaria e está reclamando suas horas extras, as rescisórias, ou do senhor que tem uma questão trabalhista de insalubridade com relação à empresa que trabalha. A Justiça do Trabalho é também a negociação coletiva. Já tínhamos uma tradição de sindicatos negociando com empresas, ou sindicato negociando com associações patronais. Isso dentro da Justiça do Trabalho. Então, essas pessoas naturalmente vieram para a Justiça do Trabalho e vendo que estava dando resultados para situações que ninguém sabia como resolver, por exemplo, como distribuir as máscaras, como vai ser a ordem de distribuição do álcool em gel, como renegociar as saídas dos turnos das empresas para evitar que muitas pessoas fiquem aglomeradas. Era uma série de questões que aumentaram de volume, mas que também a Justiça do Trabalho aumentou as soluções. E isso estabeleceu uma relação de confiança.

Uma das consequências é que hoje ainda nós colhemos os frutos desse reposicionamento da Justiça do Trabalho perante a sociedade no sentido de colaborar para a solução de conflitos coletivos. Por exemplo, despedidas massivas que tenho que negociar como é que vai ser a liberação do fundo de garantia, o pagamento das rescisórias. Como vou salvar alguns empregos? Quando fecha uma empresa grande em uma cidade, não é um problema só do empresário e dos trabalhadores. É um problema é toda a comunidade. É a economia daquela cidade que está sendo afetada.

E tudo isso hoje é discutido dentro da Justiça do Trabalho. Posso dar dois exemplos enormes, a privatização da CEEE e da Corsan, que passam por questões trabalhistas que são discutidas dentro da Justiça do Trabalho. Uma greve como tivemos alguns meses atrás na refinaria de petróleo é um problema para toda a comunidade. É muito equilibrado nossos pedidos de mediação, metade são de empregados, metade são de empregadores, o que mostra que a Justiça do Trabalho está viva, está se adaptando a novas demandas sociais sem perder sua tradição das reclamatórias individuais. Esse, a meu juízo, é o grande passo que se deu e que se aproveitou uma oportunidade (em um contexto) que em princípio era triste para criar alguma coisa boa para a sociedade no que diz respeito a conflitos coletivos.

No início do ano, a gente teve uma operação que resgatou 207 pessoas em um alojamento em Bento Gonçalves que eram submetidas a trabalho análago à escravidão. É possível garantir justiça social nesses casos? E qual o impacto que esses casos podem ter na sociedade?

A primeira reflexão é justamente o que eu chamo de justa medida, que é punir severamente pessoas que não respeitam a dignidade do trabalho humano. Mais do que isso, esse debate não é um debate apenas da Justiça do Trabalho, do Ministério Público ou da Superintendência Regional do Trabalho, que é o Ministério do Trabalho. Não é um problema só público é um problema privado também, um problema que tem que estar na consciência dos trabalhadores e dos empresários. O trabalho escravo é indigno, ele repulsa qualquer padrão de moralidade. Não posso trabalhar com pessoas que são tratadas como animais, que comem comida azeda, que são despertadas aos gritos, que recebem choques elétricos. Isso não é admitido em nenhuma sociedade capitalista do mundo porque é indigno e deve ser banido do nosso parâmetro. Dos patamares mínimos não podemos abrir mão. Então, essa é a primeira questão, por isso que o Poder Judiciário tem que ter posição firme, no sentido de repressão, que é basicamente a interdição dessas empresas, o pagamento de indenizações, inclusive por danos morais. Depois, o poder público tem que pensar na reinserção dessas pessoas. Não basta só combater o trabalho escravo de forma imediata, mas também a médio e longo prazo, tem que procurar medidas para que isso não aconteça.

Mas a justa medida também entra na questão de não extrapolar os limites. Temos toda uma cadeia produtiva, falando especificamente do setor vitivinícola, que trabalha de forma honesta e correta. Então, não podemos superdimensionar, no sentido de prejudicar pessoas que são compromissadas, que são pequenas propriedades, que tem uma longa história de respeito às questões trabalhistas. Com esses temos que ter cuidado. Se de um lado tenho que ser duro e firme no tratamento das atitudes não civilizadas, que é o trabalho análogo à escravidão, por outro lado, tenho que ter o cuidado para que isso não extrapole e prejudique toda uma cadeia produtiva, prejudique a história de uma cidade, a tradição de bom convívio e de respeito às leis trabalhistas. Então, esse é o posicionamento do Tribunal, de firmeza e equilíbrio ao mesmo tempo. Porque isso tem severas consequências econômicas. Se associo um produto à imagem do trabalho análogo à escravidão, faço uma depreciação e outras pessoas perdem empregos, outras atividades vão à bancarrota por conta de um exagero.


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