Angélica Liddell: “A beleza é um ato de terrorismo contra a intolerância”

Angélica Liddell: “A beleza é um ato de terrorismo contra a intolerância”

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"Não costumo ir ao teatro. Eu nem conheço o teatro que é feito na Espanha". Foto: Luca Del Pia / Divulgação / CP


Inédita na América Latina, a soturna, niilista, densa e impactante encenação de “Génesis VI: 6-7” estreou este ano na Europa e chega ao Brasil por meio do 24º Porto Alegre em Cena. O espetáculo é concebido pela poeta, dramaturga, atriz e diretora catalã Angélica Liddell, de 51 anos, natural de Figueres (terra de Salvador Dalí). Liddell assina texto, cenografia, iluminação e figurinos e também atua na montagem que terá apresentações na Capital neste sábado e domingo, às 20h, no Teatro do Sesi (Assis Brasil, 8787). A atração tem venda antecipada de ingressos no site e na bilheteria oficial do festival no Centro Municipal de Cultura (Av. Érico Veríssimo, 307)

Diretora que se interessa pela dor, pelo sofrimento, pelo antigo e pela nostalgia da beleza, que tem a melancolia ou a bílis negra como forma de se aprofundar nos desígnios do ser,  Angélica é conhecida por espetáculos como “Frankenstein”, “El Año de Ricardo”, “You are my Destiny” e “O Matrimónio Palavrakis”, este montado em Porto Alegre por Maurício Casiraghi. Agora, ela traz ao festival a terceira parte da Trilogía del Infinito, composta ainda por “Esta Breve Tragedia de la Carne” e seguida por "Qué Haré Yo con Esta Espada?". O espetáculo tem como ponto de partida uma passagem extraída do Velho Testamento: “Então arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a terra e pesou-lhe em seu coração. E disse o Senhor: destruirei o homem que criei de sobre a face da terra, desde o homem até o animal, até o réptil, e até a ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito.” (Gênesis 6:6,7). O espetáculo é montado pela companhia Atra Bilis Teatro, fundada em 1993, junto com Gumersindo Puche (também diretor da Cia., produtor e ator), que alude à bílis negra, substância do corpo humano que na medicina antiga era a causa da melancolia e hipocondria. Para reconquistar a beleza perdida, o espetáculo desvincula-se do teatro funcional e busca a materialização do símbolo, a volta do contato com os instintos mais primevos. A morte, o amor, um ser supremo e o sexo são temas recorrentes na obra da diretora, que quer falar da parte tóxica do homem, da humanidade, e das instituições. No palco para este “Genésis”, estarão além de Angélica e Gumersindo Puche, os intépretes Juan Aparicio, Tania Arias Winogradow, Aristides Rontini, Yury Ananiev, Sarah Cabello Schoenmakers, Paola Cabello Schoenmakers e Borja López. A recomendação etária para assistir ao espetáculo é de 18 anos. “Desde que soube que a última obra da Trilogía del Infinito estaria pronta a tempo de vir para o Porto Alegre em Cena, tive certeza da grande atração internacional de 2017. Angélica Liddell é uma das artistas mais transgressoras da atualidade e ao mesmo tempo com uma pesquisa cênica contundente e atual”, chancela Fernando Zugno, coordenador-geral do Porto Alegre em Cena.

Nesta entrevista, Angélica Liddell fala sobre o espetáculo, sobre as suas concepções de teatro, o fato de não ir ao teatro nem na Espanha e em outros países, sobre o sofrimento e como reconquistar a beleza perdida.

Correio do Povo: Do que especificamente Deus pode se arrepender da criação do homem, nos dias atuais?
Angélica Liddell: Eu nunca trabalho da perspectiva do homem atual, mas sim do homem antigo. Me interessa a antiguidade das paixões. A ruindade é antiga. A culpa é antiga. O amor é antigo. Se eu tiver que ter em conta o homem atual, penso que tem uma carência tremenda de vida espiritual. O espírito foi desvalorizado a favor de uma explicação materialista das coisas. Não concebo um homem que não seja explicado desde o plano espiritual. Creio que Deus sentiria falta de uma vida vertical, como disse Safranski (filósofo alemão Rüdiger Safranski).

CP: Qual a motivação para criar da Trilogia do Infinito e a terceira parte “Génesis VI: 6-7”?
Angélica Liddell: A necessidade da fé, uma necessidade pessoal e um desejo de tudo termine.

CP: Como foi pensada a concepção deste espetáculo?
Angélica Liddell: É muito complexo. Sempre parto de um caos de imagens, de referências que logo consigo organizar na sala de ensaios. Tem sido um processo intelectual de um ano ou mais durante a qual pus em relação a cultura hebraica e a cristã, e tento formalizar o problema da criação e a palavra, e o problema da descendência.

CP: Qual tem sido a reação do público e da crítica com Gènesis?
Angélica Liddell: Na Itália, a crítica foi muito inteligente. Eles compreenderam o conflito espiritual que estou propondo mediante este ato estético. As reações do público eu imagino que sejam múltiplas, por isso me custa muito mensurá-las.

CP: O teatro que propões é tão íntimo, tão das profundezas do ser. O que quer provocar as tuas criações?
Angélica Liddell: Desejo propor estados de crise e angústia ante tudo aquilo que não podemos compreender, o amor, Deus e a morte. Ir mais além do que o sentimental, chegar até os nervos através das emoções.

CP: Como é possível reconquistar a beleza perdida neste século XXI?
Angélica Liddell: Somente mediante uma guerra pela nostalgia do belo, com no "Hiperyon" de Hölderlin (Hyperion ou o Eremita na Grècia, de Friedrich Hölderlin). E já sabemos que a perderemos.

CP: O mundo está caminhando novamente para o lado direito, do totalitarismo e da intolerância. O que pode o teatro contra estas forças?
Angélica Liddell: A beleza é um ato de terrorismo contra a intolerância. É mais potente do que qualquer denúncia. Mas a arte não é o estado. Os políticos deveriam ser filósofos e não empresários.

CP: Ariane Mnouchkine tem uma frase que pode ser um preâmbulo para minha próxima pergunta: “Quem acha que pode ser ator sem sofrer, engana-se”. Qual é a tua relação com o sofrimento no atuar, no criar, no dirigir?
Angélica Liddell: Tudo nasce da ferida íntima. Depois esta ferida se transforma em outra coisa, em um objeto estético. Mas a eloquência procede da ferida.

CP: Queria que você falasse da sua formação e instrumentalização no teatro.
Angélica Liddell: Estudei no RESAD em Madri, mas eu me formei nas minhas visitas ao Museu do Prado. Nunca fui influenciada pelo teatro, não é minha referência, minhas referências são no mundo das artes plásticas, do cinema e da literatura.

CP: Qual a tua relação e o que conheces do teatro feito na América do Sul e no Brasil?
Angélica Liddell: Não costumo ir ao teatro. Eu nem conheço o teatro que é feito na Espanha. Não estou muito interessada no mundo do teatro.

CP: A bílis negra do nome do teu grupo (Atra Bílis) é a melancolia que te acompanha. Como ela pode transcender na arte atual?
Angélica Liddell: A melancolia pertence a condição humana, sua transcendência é irremediável porque como no Hércules está associada ao absurdo da existência, nenhuma tarefa a satisfaz, nenhum esforço resulta em êxito.

por Luiz Gonzaga do Lopes

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