As violências de um sistema complexo

As violências de um sistema complexo

Correio do Povo conversou com a médica obstreta Sandra Canali

Felipe Uhr

publicidade

Em julho deste ano, um médico anestesista foi flagrado cometendo estupro, em plena sala de parto, em uma mulher que acabara de ganhar um filho no Rio de Janeiro. O caso chocou o Brasil. O caso foi extremo, porém, todos os dias mulheres sofrem abusos verbais, físicos e sexuais que podem ser classificados como violência obstétrica. A médica obstetra Sandra Canali conversou com o Correio do Povo sobre o assunto, explicou o que mudou ao longo das décadas e como novos cuidados às mulheres e bebês foram sendo incorporados. Formada em 1983, ela atua na área da assistência médica no Hospital Fêmina, em Porto Alegre, desde 1986 onde atualmente a coordena o serviço de obstetrícia.

O que é violência obstétrica?

Antes o trabalho dentro dos hospitais era feito para um bom andamento da resolução de casos. Na obstetrícia moderna, a paciente é o centro da atenção. Então, não se vai botá-la em uma posição que fique bom para o funcionário ou melhor para fazer o parto, vai ser a posição que para a paciente é melhor. A equipe de saúde entra no sentido de acompanhar e fazer intervenções quando necessário. Antigamente, os partos eram feitos por mulheres, por parteiras geralmente com experiência de já ter passado por um parto, já ter sentido aquela dor, e então poder confortar e, especialmente, reduzir o medo, que é o grande mistério da maternidade.
A violência obstétrica não é a violência do doutor. Ela é o descompasso das coisas que tem relação com a gestação da paciente. Por exemplo, o postinho de saúde perto da paciente não tem médico, isso é uma violência obstétrica que não é feita pelo obstetra mas pelo gestor de saúde. Não ter transporte para ir ao hospital, não ter hospital perto da sua casa, não ter vaga no hospital, isso tudo é violência. É um leque gigante que começa na receptividade da paciente durante a gestação e no seu local de atendimento. Se ela precisar realizar exames para garantir sua gravidez e não tiver, a dificuldade de encontrar especialista para alguma área, isso também é violência. E tem a violência que a grande maioria entende como violência, quando o doutor falou grosso ou o funcionário foi desrespeitoso ou não deixaram entrar o familiar durante o trabalho de parto.
A gente tem que ter funcionários treinados dentro dos hospitais e fora dele, no sistemas de saúde como um todo e isso não serve só para medicina estatal, também serve para medicina privada. Uma paciente que confia no seu médico já sai com uma vantagem em relação ao sistema público, porque ela tem aquela referência profissional que vai atender no parto. A paciente do sistema público tem uma incógnita de quem vai atendê-la no parto. A paciente da iniciativa privada conhece seu doutor, escolhe e tem o tempo do pré-natal para fazer uma baita afinidade.

A senhora fala da estrutura, mas o que choca é quando a gente ouve relatos de violência obstétrica no parto. A qualificação dos profissionais ainda é uma questão a ser vencida?

A qualificação é fundamental. Faz anos que estamos fazendo treinamentos e qualificações, mas a equipe de um grande hospital é móvel, não é sempre a mesma porque funcionários saem e outros entram. A paciente entra pela emergência, passa por laboratório, nutrição, acolhimento, internação durante o parto e depois pela sala recuperação, a gente circula por um monte de setores dentro do hospital. Precisa ter treinamento contínuo. Outra coisa que gostaria muito de abordar é que existe uma coisa meio tênue de discutir, que é o sentimento da paciente. Qual era a perspectiva, qual o plano que a paciente tinha, o que ela desejava e o que aconteceu? Aí tu vais ter um bom resultado ou um mau resultado. O resultado não é se o neném nasceu bem ou não. Isso é uma coisa que temos que trabalhar, por isso a gente tem que falar sobre o assunto, porque muitas pacientes não sabem o que esperar.

De que forma passar conhecimento às pacientes?

Escrevendo, falando, pedindo para ler, dando folder, perguntando quais as dúvidas. A gente vê pessoas que fizeram chá de bebê e nunca leram uma linha sobre parto. Como é que ela vai saber que o parto é dentro do normal. Porque parto tem dor, a gente tem que fazer alívio da dor, mas a gente tem que ter conhecimento porque se tu não quer ter nem o primeiro sinalzinho de cólica, aí vai ficar complicado querer uma coisa sem intervenção. A outra coisa que observo é para as pacientes que estudam, que tem um desejo muito forte de um parto sem intervenção. É assim que todos nós queremos, porque o trabalho de parto iniciado espontaneamente libera hormônios que faz uma porção de coisas, não só dilatar o cólon. Ele prepara o neném, faz o aperfeiçoamento pulmonar, o neném nasce mais preparado. A gente é mamífero feito para nascer pelos canais de parto. Então isso é lindo, mas a gente também tem coisas que são da nossa época, como o número exorbitante de diabetes gestacional, de pacientes hipertensas, mal nutridas, obesidade e isso faz com que a obstetrícia tenha que fazer intervenções antes do trabalho de parto. Uma boa prática obstétrica é misturar atendimento e protocolo, que é feito baseado em evidências internacionais. A equipe está pronta para as duas coisas, não se meter quando não precisa e oferecer tratamento adequado quando precisa. A gente só quer fazer quando necessário.

O ambiente do parto hoje é mais humanizado?

Antigamente, quando eu tinha 13 anos, a minha primeira sobrinha nasceu nesse hospital aqui, ele era só privativo e os nenês não ficavam com as mães. Iam todos para um lugar chamado berçário. Vinham para a mãe dar mamar a cada três horas, era o que se entendia por conhecimento naquela época e não aceitável hoje.

Quais as condições necessárias para o sistema não praticar violência obstétrica?

A gente já teve grandes avanços. Antes o familiar não entrava, recebia informações duas vezes ao dia, às vezes ficava do lado da porta imaginando milhões de coisas que poderiam ter acontecido com sua gestante e seu neném. Imagina a angústia. E medo da paciente que entrava no hospital? Porque geralmente quem ganha neném nunca esteve em um hospital. Um ambiente sem ninguém para ela se sentir amparada, para dar uma mão, um abraço, porque essa é a função do familiar, trazer segurança. Houve muitas mudanças.

E como lidar com as intervenções durante o parto? Como diferenciar da violência obstétrica?

A gente tem que fazer o plano de parto, de como a gestante deseja, mas deixar aberta a possibilidade de intervenções, porque é isso que faz a diferença entre a vida e morte. São duas vidas, a da mãe e a do neném. A equipe da saúde está ali para ajudar e para fazer diagnósticos, ver se tem alguma coisa diferente que precisa intervenção. Às vezes a gente tem que realmente fazer, mas tem que dizer porque que tá fazendo. Esse é o grande diferencial.

Recentemente, um anestesista estuprou uma mulher durante o parto. Esse fato escancara algum tipo de negligência que possa ter acontecido não só naquele hospital, mas em outros?

Eu não consigo imaginar isso acontecendo. Trabalhei em sala de cesariana uma vida inteira, não consigo imaginar isso em sala de nascimento ou de parto. Diferente das outras salas cirúrgicas, que a gente bota o paciente para dormir, na cesariana tem a emoção de ver teu nenê, o primeiro contato, escutar o coração da mãe. Isso é muito importante, então não se seda. A paciente de cesariana só dorme quando o anestesista s seda. É uma coisa muito rara. Outra coisa, o familiar fica tempo todo na sala e só sai com o neném. Naquele caso, ele se posicionou estrategicamente dizendo que acontecia alguma coisa com a paciente, que ele precisava sedá-la. E por que aquele paninho? Aquele paninho é fundamental,  é presente em todas as cirurgias. Serve para  dividir o campo e não contaminar. Não acho que tenha sido negligência, acho que o cara se aproveitou de forma bárbara de uma situação e ainda tirou o pai da sala, deu um medicamento que a paciente não precisava e, mesmo que ela dissesse alguma coisa depois, ele poderia dizer que deu uma droga que dá que tem como efeito colateral delírio.

Essa questão do abuso do médico com pacientes. Houve um rompimento com o silêncio?

Acho que sim, é uma evolução da sociedade, das mulheres se empoderando para reclamarem disso. Pode acontecer em consultórios. A gente tem treinamento, em caso de profissionais homens que atendem muitas mulheres, para que a secretária ou enfermeira deixe a porta aberta, que chame família ou familiar da paciente para entrar junto, para que diminua o número de casos. Dentro do hospital é mais difícil, mas eu não juro que seja impossível, eu juraria que era impossível acontecer aquilo que aconteceu e não foi impossível, aconteceu. Mas nunca me passaria pela cabeça, em um lugar assim, cheio de gente trabalhando que aquilo fosse acontecer. O fato chamou atenção das Instituições...
Esse tipo de fato abriu os olhos das instituições. A gente tem bastante cuidado, procura, dentro do nosso grupo de trabalho, mesclar homens e mulheres. Até tem grupo só de mulheres, porque temos mais mulheres, mas homens somente não temos. Nenhum grupo médico é só formado por homens, nem de atendente por sala, ou de técnico de enfermagem por sala, justamente para que a paciente também não se sintam exposta. Mas esse caso foi de uma dor, me senti um pouco envergonhada, por isso ter acontecido dentro de uma sala de cesária, que é onde costumo trabalhar. Eu me senti agredida pelo colega que lameou a minha profissão, me senti muito mal com isso e eu espero que outras pessoas também tenham sentido assim, porque a gente não pode fingir que não vê. A gente não pode não abrir a boca, nós temos que abrir a boca, temos que contar, temos que principalmente prevenir.

E que fazer para prevenir?

Denunciar. Para denunciar, a maioria dos hospitais tem serviço de denúncia dentro do próprio hospital e essas coisas correm em sigilo dentro da instituição. A gente também como instituição, tem que fazer a prevenção que é o controle dos funcionários, né saber a história do funcionário. Aqui no hospital a gente faz. Todo mundo tem avaliação de desenvolvimento nós temos gestão de trabalho. O Grupo Hospitalar Conceição é um hospital bastante é um grupo de quatro hospitais muito grande quatro hospitais uma UPA, vários postos de saúde, a gente tem mais de 10.000 funcionários e nós temos uma gestão de trabalho forte a gente faz avaliação de desenvolvimento. A gente tem anualmente realizado pelo chefe do serviço as pactuações, onde tem todas desde críticas até elogios. A gente tem uma história também. Nós temos fazemos aperfeiçoamentos a gente faz treinamento, a gente tem cursos obrigatórios, incluídos curso de ética tá e pra gente saber também conta preconceitos tá? Então assim e aí tu vai entrar também em assédio, assédio físico, assédio moral e até a série sexual.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895