Atuação da aldeia indígena à Unesco

Atuação da aldeia indígena à Unesco

Atuante em arquitetura sustentável e bioconstrução, Bruna destaca a importância de ouvir as comunidades locais e repensar a abordagem da preservação, destacando o valor da cultura viva.

Veridiana Dalla Vecchia

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A arquiteta Bruna Tabajara Brilmann, de 29 anos, foi a única representante do Brasil a participar do World Heritage Young Professionals Forum (Fórum de Jovens Profissionais do Patrimônio Mundial, em tradução livre), um evento da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) que reúne pessoas do mundo todo para debater questões ligadas ao patrimônio. Neste ano, foram 34 selecionados entre 17 mil inscritos dos mais diversos países. Arquiteta na Sabiá Construções Sustentáveis, ela trabalha com arquitetura sustentável e bioconstrução, utilizando materiais naturais e tecnologias ancestrais. Bruna também é criadora da EcoaGuarani, um plataforma de divulgação e criação de projetos em prol de comunidades guaranis no Rio Grande do Sul. 

Podes contar um pouco sobre o World Heritage Young Professionals Forum? 

É um fórum organizado pela Unesco que ocorre todos os anos em um país diferente. Esse ano foi de 3 a 12 de setembro, na Arábia Saudita, com o tema "Olhando para frente, os próximos 50 anos da proteção do patrimônio natural e cultural". Esse evento sempre acontece uma semana antes da reunião do comitê mundial da Unesco, o World Heritage Committee. Então, todo o ano o World Heritage Committee se reúne em um país para conversar sobre diferentes questões de listagem de novos patrimônios ou o que está acontecendo com os patrimônios existentes ao redor do mundo. 

Como foi a seleção para participar do Fórum?

A primeira etapa era textual, a gente tinha que escrever um pouco sobre a nossa trajetória, no que a gente trabalha, qual a nossa profissão, onde a gente estudou. Várias profissões podiam se inscrever, não havia exigência de ser arquiteto. Tinha arquitetos, mas também arqueólogos, educadores ambientais, engenheiro de software, etc. Essa foi a primeira fase, escrever sobre a nossa trajetória e como a gente trabalha com patrimônio. A gente tinha que escolher um patrimônio mundial do nosso país e explicar como a gente estava relacionado a ele. Eu escolhi a Mata Atlântica, ainda que a parte da Mata Atlântica que está listada pela Unesco seja de São Paulo ao Paraná. Mas eu falei sobre o meu trabalho com os guaranis na preservação da Mata Atlântica, quão importante é e como existe uma relação direta entre a preservação e a presença deles no território. Na segunda etapa, eles pediram para a gente gravar um vídeo de um minuto que respondesse a pergunta "Qual é o patrimônio mundial mais importante para ti no teu país?". Eu falei sobre a sabedoria indígena, como isso é um patrimônio importante a ser preservado aqui no Brasil. Eu fui na aldeia a Tekoá Anhetenguá (Aldeia Verdadeira, em português), na Lomba do Pinheiro, gravar o vídeo e ficou bem bonitinho. Durante a gravação, uma menininha veio falar comigo e ficou comigo no vídeo o tempo inteiro, a Ana. 

Qual era a dinâmica do fórum, quais eram as atividades?

Foram nove dias de encontro, ficamos todos no mesmo hotel. Éramos 34 pessoas de diferentes países do mundo. Deu para perceber que eles foram bem cuidadosos na escolha dos países. Havia sete pessoas da América Latina, a maioria era da África e do Oriente Médio. Durante o fórum, eles falaram que queriam aumentar a representatividade dessas regiões porque eram os lugares onde havia menos patrimônios listados. Na verdade, o Oriente Médio tem bastante, mas, como o evento foi no Oriente Médio, deram prioridade para as pessoas dali. Então, ficamos todos no mesmo hotel e todos os dias íamos de manhã ao local do evento, para diferentes atividades. Alí a gente também almoçava e fazia os lanches da tarde e da manhã. Muitos palestrantes de universidades e profissionais de patrimônio vinham dar palestras. A gente teve quatro principais temas no fórum:  mudança climática, turismo sustentável, dimensões digitais de patrimônios mundiais e representação nos patrimônios mundiais. Também teve saída de campo para conhecer Riade e os patrimônios da capital. Como estava muito quente, a gente não fazia isso durante o dia. A gente saía só depois das 6 horas da tarde e ia a lugares como palácios, a At-Turaif, um distrito todo de terra que é muito lindo. A gente sempre fazia essas visitas para conhecer um pouco melhor a cultura saudita e as ferramentas e estratégias para conservação do patrimônio ali. Também passamos quatro dias no Al-Ahsa Oasis, que é o maior oásis do mundo, um lugar que fica a quatro horas de viagem de Riade. Lá a gente ficou três noites, conhecemos a cultura do oásis, visitamos plantações de tâmaras, passeamos no deserto, entendemos o sistema de irrigação deles, que existe há milhares de anos. Sempre havia muita receptividade, em todos os lugares que íamos havia gente esperando com tâmaras, com café árabe, uma receptividade maravilhosa.

Existe algum desdobramento pós evento? Foi criada alguma coisa em conjunto entre os participantes? 

Um dos desdobramentos foi um projeto que a gente desenvolveu sobre o oásis, relacionado ao tópico de documentação digital. A gente foi para o oásis já com a ideia e lá coletou dados, entrevistas, o que fosse necessário para a ideia que a gente tinha. O meu grupo fez uma página no Instagram (@alahsatotheworld). Ficou muito legal, a gente fez muitas entrevistas com as pessoas do local sobre como eles viam o passado, o presente e o futuro da região e das pessoas que estavam lá. Cada grupo fez algo, alguns fizeram óculos de realidade virtual, outros fizeram sites ou mapas interativos com a intenção de trazer a tecnologia para esse mundo, para que as pessoas, principalmente os jovens, consigam também se inteirar das questões de conservação. Isso porque geralmente (esse tema) fica muito entre pessoas mais velhas, que têm interesse e acesso a isso. O segundo resultado foi uma declaração feita nos dois últimos dias sobre tudo o que a gente estudou, porque havia palestras, mas também atividades nas quais a gente conseguia expressar nossa opinião sobre o tópico que estava sendo abordado. E sempre havia pessoas com diferentes pontos de vista falando, então houve várias conversas e debates. No último dia, quatro pessoas do grupo foram escolhidas para compilar tudo que foi falado, nossas ideias para o futuro da conservação, em uma declaração. Essa declaração foi apresentada na abertura do evento que começou na semana seguinte. A gente apresentou essa declaração em um auditório com todos os representantes de todos os países participantes. O documento foi lido nessa cerimônia, no primeiro dia do encontro do World Heritage Committee, e também fomos para o palco e recebemos um certificado.

O que esse fórum trouxe para ti, que tipo de conhecimento pode ser aplicado aqui? 

Eu acho que foi muito interessante estar em Riade, na Arábia Saudita, porque eles fazem um esforço grande para preservar vários aspectos construtivos e formas de vida ancestrais. Para mim foi muito rico perceber que é possível existir essa cultura viva. Inclusive, eles estão nesse processo de trazer a cultura antiga ainda mais para o presente. Porque houve um processo na Arábia Saudita de modernização, assim como em vários países árabes, de construir grandes edifícios de vidro, por exemplo. Mas eles têm uma visão muito bonita, eles trazem, por exemplo, os grafismos, os triângulos que eles usam muito, em diferentes lugares. A gente visitou uma escola de artes tradicionais, que eles estão resgatando. Claro, existe a modernidade, mas eles estão nessa busca bem grande por manter viva a tradição. Há, por exemplo, o artesanato com a palha da tamareira, a árvore de tâmara, que eles fazem cestos e joias, a cerâmica também é muito presente, a construção com adobe, os tecidos que eles fazem as costuras, os bordados. Estão buscando fazer com que os jovens tenham acesso a esse conhecimento, e tudo de graça. A visita a essa escola foi incrível, tudo impecável. Esses conhecimentos de coisas artesanais, que a gente faz com as mãos e que muitos jovens não têm vontade de fazer, eles estão buscando resgatar. Foi lindo perceber que é possível existir esse resgate da artesanalidade das coisas e da construção com terra, porque lá tu vês na cidade o adobe, a pedra. É algo que me inspira a continuar trabalhando com a arquitetura com terra, trazer esse conhecimento ainda mais forte para os guaranis e para os projetos que estão sendo implantados em aldeias. Porque muitos projetos aqui se distanciam muito da cultura indígena. Por exemplo, essas casas de tijolos e telha brasilit são as mais fáceis, só que o mais fácil acaba os distanciando da própria cultura. 

Sobre o trabalho que tu fazes com os guaranis, como é a relação deles com esse processo de resgate? Imagino que existam diferenças entre as comunidades, mas como é a abertura para esse resgate?

Eles são sempre muito abertos. Se alguém vai lá e diz "vamos fazer uma casinha de tijolo", eles vão falar "sim, quero". Mas se a gente for lá e disser “gente, vamos fazer um mutirão para construir uma parede de terra em vez de tijolo”, eles vão falar sim e vão ficar muito felizes. Eles estão em uma posição de aceitar qualquer coisa que venha, mas quando existe algo que vai além, que considera eles como parte do processo, é uma explosão de felicidade.

Porque aí também reconhece a cultura deles, não vem totalmente de fora. 

Exato, mas eles vivem em uma situação tão vulnerável que não estão em posição de poder dizer não. Às vezes vem comida, cestas básicas, por exemplo, com farinha de trigo, óleo, gelatina, que não faz parte da cultura. Eles não negam, mas eles adorariam que existisse uma horta, uma roça de aipim. Eles fazem, mas às vezes é difícil manter, eu vejo assim.

Tua participação nesse projeto da Unesco também serviu para pensar em novas formas de atuar nessas comunidades? 

Com certeza, porque também foi muito legal o encontro com essas outras pessoas de vários lugares do mundo, porque muitas também trabalham comunidades. A maioria trabalha com coisas mais convencionais, como arqueólogos ou arquitetos que trabalham em escritório. Mas algumas pessoas trabalham diretamente com comunidades. Eu inclusive percebi que existia um distanciamento das pessoas com as comunidades. Poucos ali realmente conviviam e entendiam isso mais profundamente. Foi difícil para eu lidar inclusive com as organizadoras, porque percebi que existia uma visão de poder delas, “eu sei o que fazer”, “eu tenho a técnica”, “eu sei como conservar um edifício e vocês, comunidades indígenas ou outros tipos de monumentos, precisam ser conservados”, como se fosse independente da opinião de quem mora ali. Então, percebi como é rica essa minha experiência sendo amiga deles (dos indígenas) e colaborando muito mais além do que só com o próprio trabalho. É uma forma de me relacionar com a vida.

A tua percepção então é que embora organizações como a Unesco queiram preservar o patrimônio, acaba sendo uma coisa vinda de cima para baixo, que o 'ouvir' as comunidades acaba sendo algo muito incipiente?

Sim, mas eu acho que a pergunta que precisa ser feita é "por que preservar?”. Preservar só para preservar? Acho que, além de preservar monumentos, casas ou questões materiais, a cultura é a parte mais importante a ser preservada. Vai além da questão física, é a dança, é o canto. A parte física é só uma consequência. O esforço deveria ser concentrado no campo não físico. 

Tu avalias que ainda existe uma concentração de esforços para conservar mais a parte material?

Sim, porque a Unesco foi criada com essa intenção, mas acho que fazem um esforço para ouvir as comunidades, tenho certeza que consideram isso, mas existe um conflito. É claro que a vontade deles é boa, de preservar, mas para quem a gente está preservando? Na escola de Maquiné eles sempre falam que a cultura é viva,  Tekó Jeapó é o nome da escola, que é “Cultura em Ação” em português  (Escola Autônoma Tekó Jeapó, na aldeia mbya guarani Tekoa Ka’aguy Porã, no município de Maquiné). Para eles, a questão material não é tão importante. Inclusive é muito interessante pensar nisso, porque essa coisa da preservação é muito europeia, muito organizadora. Para eles (os indígenas) as coisas são impermanentes, eles estão se movimentando. Então, querer preservar algo físico em uma aldeia é contra a cultura. Até porque uma maneira deles exercerem a cultura é passar para as gerações seguintes os conhecimentos. Quando tu refazes uma casa, as crianças estão aprendendo. Pensar na questão da impermanência nessas comunidades mais tradicionais é muito importante.


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