Pokémon Go: A tecnologia não é o monstro da história

Pokémon Go: A tecnologia não é o monstro da história

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Aplicativo faz sucesso mundial e atrai mais usuários / Foto: Mauro Schaefer / CP Memória Aplicativo faz sucesso mundial e atrai mais usuários / Foto: Mauro Schaefer / CP Memória


O jogo-aplicativo Pokémon Go - que desperta paixão e vício imediato em alguns e ódio, preocupação e espanto em outros - tem sido motivo de acirrados debates. O professor Marcelo Halpern avalia que uma das discussões que deveriam ser abertas é de como a tecnologia pode auxiliar a mudar e persuadir às pessoas a novos hábitos.

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Design da Ufrgs, com mais de dez anos de experiência no desenvolvimento de projetos de Design e Comunicação, Halpern entende que o jogo pode ajudar a refletir sobre os rumos e possibilidades que este tipo tecnologia pode proporcionar em diversas outras áreas. Ele também é consultor de empresas e atua como docente em nível de Graduação. Como pesquisador, Halpern concentra o seu trabalho nas áreas de Design para a Experiência e Emoção e em Tecnologia Persuasiva para Comportamento e Saúde.

O Pokémon Go pode ser abordado apenas como fenômeno midiático ou como um marco envolvendo tecnologia, comportamento e mudança de hábitos?

Quando observamos a repercussão do Pokémon Go é natural avaliarmos o espectro cultural e social do lançamento do novo jogo. No entanto, além do estrondoso sucesso de lançamento e adesão, é preciso contemplar uma importante quebra de paradigma envolvendo tecnologia e comportamento. Essa leitura só é possível através da compreensão de que o jogo contradiz e rompe com uma lógica estigmatizada por décadas de que videogames e jogos digitais seriam artigos fúteis, relacionados ao estímulo de hábitos solitários, antissociais e principalmente sedentários. Ao introduzir uma nova dinâmica e mecânica de jogo, em que o usuário é estimulado a sair de casa, caminhar pelas ruas, conhecer novos lugares e consequentemente interagir com outros jogadores, estamos lidando com um massivo processo de mudança de hábitos unindo entretenimento, lazer e bem-estar. Acredito que o impacto verdadeiro não seja apenas do jogo propriamente dito, mas uma necessidade de maior tolerância, curiosidade e reflexão sobre os rumos e possibilidades que este tipo tecnologia pode proporcionar em diversas outras áreas.

Como a tecnologia pode auxiliar a mudar e persuadir às pessoas?

Não restam dúvidas de que novas tecnologias impactam diretamente o nosso cotidiano. Talvez o exemplo mais banal seja o fato de que a primeira e a última coisa que fazemos no dia seja interagir com os nossos telefones celulares, hábito impensável alguns poucos anos atrás. Portanto é preciso observar que a tecnologia tem uma característica de persuasão inerente em sua natureza. No entanto, existem campos de pesquisa e desenvolvimento multidisciplinares dedicados à compreensão da relação entre tecnologia e o comportamento. Parte-se do princípio que através do mapeamento e compreensão de determinadas condutas desejadas, habilidades envolvidas e os gatilhos e estímulos necessários é possível projetar produtos que estimulem e motivem a mudança hábitos e comportamentos. Os exemplos vão desde aplicativos voltados à promoção de uma alimentação saudável e abandono do cigarro, websites dirigidos à organização financeira pessoal e economia, dispositivos controladores de atividade física e até, paradoxalmente, aplicativos voltados a desestimular o uso excessivo de telefones celulares.

Por que o Pokémon Go tem despertado paixão em alguns e ódio e preocupação em tantos outros?

Apesar de recente, é importante ressaltar que o jogo não é tão novo assim. O Pokémon Go é, na verdade, uma roupagem para uma plataforma nos mesmos moldes existente há pelo menos dois anos. No entanto, talvez pela ausência do endosso de uma franquia internacional com milhares de fãs saudosos pelo mundo todo, não tivesse obtido a mesma repercussão até o momento. Além do apelo nostálgico dos fãs, o sucesso do Pokémon Go deve-se principalmente a inovadora mecânica de interação social móvel promovida pelo jogo. Por outro lado, o jogo tem recebido duras críticas. Dentre os principais argumentos negativos constam dúvidas sobre uma nebulosa política de privacidade de dados do aplicativo. Além disso, as preocupações sobre o uso excessivo, e com a segurança dos jogadores crescem à medida que novos casos de criminalidade e acidentes causados pelo uso inapropriado envolvendo usuários são reportados. Mesmo que algumas ressalvas sejam de fato relevantes, como a questão da política de privacidade, uma boa parte das críticas nasce de um natural estranhamento a novas tecnologias. Sobre a segurança, por exemplo, alguns casos recentes apontam que o risco de jogar Pokémon Go é o mesmo que enviar mensagens de texto pelo celular. Acusar a tecnologia de incentivar a insegurança pessoal é no mínimo relevar um quadro insustentável de insegurança pública e criminalidade, e, portanto, não é possível transferir a responsabilidade para um jogo.

Esse game mescla realidade e mundo virtual. Até que ponto ele pode ser benéfico para as pessoas?

A tecnologia presente no jogo e relacionada a esta mescla chama-se realidade aumentada. Ao contrário da realidade virtual, em que ocorre uma imersão completa do usuário em um ambiente totalmente virtual - muitas vezes com óculos ou capacetes especiais -, na realidade aumentada o usuário se utiliza de uma plataforma digital, como um telefone celular, por exemplo, como um interlocutor para interagir com o mundo real. Com este tipo de recurso, a tecnologia tem a capacidade de amplificar sensorialmente a realidade através de uma infinidade de possibilidades e recursos. No caso do jogo, a realidade aumentada funciona como um artifício de interação. É uma maneira de fazer com que os jogadores visualizem a realidade de uma forma diferente, no caso, os personagens surgem e devem ser caçados em locais e espaços reais. O benefício ao usuário é obviamente a diversão e competitividade como qualquer outro jogo de videogame ou jogo digital. Porém, neste caso, o jogo exige que os usuários investiguem novos lugares e consequentemente, estimula a socialização e a promoção de hábitos mais saudáveis.

Embora exista interação entre as pessoas, na prática, não é maior entre o indivíduo e a máquina?

Talvez a maior característica de interação proporcionada pelo jogo seja a partir da lógica de estabelecimento de tribos e de um senso de comunidade. Ao exigir que as pessoas circulem pelas ruas e visitem novos lugares, muitos optam por se unir em grupos. Em determinados casos estes grupos são espontâneos, inesperados e demograficamente diversos. Existem relatos de pais que desenvolveram o hábito de acompanharem os filhos durante as caçadas, escolas que dedicam períodos de atividades físicas ao jogo, inclusive, eventos noturnos congregando milhares de jogares desconhecidos em festas, bares, parques e espaços públicos. A aglomeração de pessoas em pontos estratégicos para o jogo, faz com que a concentração de jogadores seja um espaço de interação e troca de informações e conhecimentos.

A comunicação digital é mais propícia à desatenção do que uma conversa real. Por quê?

Acredito que dependa do contexto. Existem formas e canais de comunicação que são formais e tão oficiais quanto uma conversa real, basta observar o mercado de trabalho remoto. No entanto, a dúvida e desconfiança sobre o valor desta comunicação deve-se em parte à velocidade ou até mesmo à informalidade de alguns canais. O benefício da tecnologia na comunicação é exatamente permitir e aproximar remotamente pessoas com uma logística e velocidade incomparáveis. Hoje é possível se comunicar com qualquer pessoa do mundo quase instantaneamente e a qualquer hora do dia, sem nenhuma cerimônia ou formalidade. Portanto, é importante compreender também que alguns códigos de condutas sociais vêm se modificando com o tempo, principalmente devido à ascensão de novas plataformas. Acredito que a desatenção pode acontecer, não só pelas características individuais de cada interlocutor, mas também pela overdose de canais e plataformas, ou até mesmo pela trivialização ou natureza informal de algumas formas de contato digital.

A internet dá sensação de preenchimento e quando a pessoa fica sem ela se sente ‘vazia’. Não seria conveniente dosar essa dedicação?

Definitivamente. A internet, assim como qualquer plataforma digital, deve ser considerada como um meio e não como fim. Estamos progressivamente nos tornando mais dependentes de tecnologia por causa dos avanços, facilidades e benefícios que ela tem trazido. No entanto, por maiores que sejam as transformações na maneira como nos comunicamos, as relações e competências interpessoais e de convivência seguem sendo fundamentais, inclusive no uso da tecnologia. É preciso reconhecer a importância e a inevitável ascensão das novas plataformas, e principalmente desenvolver uma cultura de abertura e experimentação; mas também de composição e equilíbrio. Dosagem, bom senso, diversificação e respeito a limites sociais são características e habilidades que devemos estimular e dominar tão velozmente quanto ao avanço da tecnologia.

Dosagem, bom senso, diversificação e respeito a limites sociais são características e habilidades que devemos estimular e dominar tão velozmente quanto ao avanço da tecnologia.”

Por Luciamem Winck

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