‘Quem está mal, usa as telas, não é o contrário’, diz neurocientista sobre uso das mídias digitais

‘Quem está mal, usa as telas, não é o contrário’, diz neurocientista sobre uso das mídias digitais

Ao contrário do que estudos anteriores indicam, Patrícia Bado afirma que o uso de telas digitais agrava muito pouco o estado psíquico de jovens

Christian Bueller

Patrícia Bado sustenta que danos à saúde pelo uso das teles pode ser menor do que o até aqui imaginado

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A neurocientista carioca Patrícia Bado participou de uma pesquisa da Ufrgs que aponta, ao contrário do que estudos anteriores indicam, o uso de telas digitais agrava muito pouco o estado psíquico de jovens.

Foi verificado que sintomas já existentes acarretam maior uso dessas mídias. Ou seja, o estudo indica que a mídia digital é usada porque o usuário está ansioso, e não o contrário.

A pós-doutoranda do PPG Psiquiatria da Ufrgs conversou com o Correio do Povo sobre este projeto.

Reparando em sua foto no perfil do WhatsApp, vejo que tens dois filhos. A ideia de trabalhar este tema partiu da experiência em casa?

A motivação foi exatamente essa. Eu já trabalhava muito com neurociência, na parte de neuroimagem, focando em transtornos mentais. Mas me interessei mais pela psicopatologia na infância e desenvolvimento infantil quando tive meu primeiro filho. Agora, tenho o segundo. A gente se preocupa com estas questões e comecei a me interessar por essa ideia de o quanto podemos permitir o uso das tecnologias, qual o efeito concreto que elas têm. Nessa mesma época, me juntei ao grupo do professor Giovanni Salum, na Ufrgs, para entender mais sobre questões de desenvolvimento e saúde mental na infância. Fui olhar os dados da Coorte de Alto Risco de Transtornos Mentais, que estuda as mesmas 2,5 mil crianças há quase dez anos. Nestes dados, havia o tempo de tela, que haviam coletado, mas ainda não analisado. Fui verificar, como o senso comum e alguns estudos de associação mostram, achando que quem usa mais tempo de telas da tecnologia vai ter mais problemas de saúde mental no futuro. E vimos o contrário. Foi um projeto muito interessante, desde a maneira como surgiu até o resultado.

O resultado te surpreendeu?

Sim. Eu esperava algo em duas direções, no sentido de que “as telas causam alguma coisa ruim, mas se você já tem problemas de saúde mental vai usar mais”. Poderia esperar algo bidirecional. Mas foi uma surpresa ver que, nos nossos dados, a direção é inversa: quem está pior usa mais telas, elas não fazem com que as pessoas fiquem pior.

De certa forma, não serve de alívio aos pais, que deixam estas mídias digitais nas mãos da criança quando não conseguem cuidar? Ou com estas avaliações, os pais correm o risco de relaxar em alguns cuidados e acabarem deixando os tablets e celulares mais tempo nas mãos dos filhos?

Qualquer coisa que alivie a culpa dos pais é ótimo porque já cai tudo em cima da gente o tempo todo. Mas esse não é o objetivo da pesquisa. Uma é não ter dados que atestem haver uma piora na saúde mental. Claro, há outras questões, como sedentarismo. Esta é a questão: não é a tela em si, é o que se está deixando de fazer. Se perdem relações sociais reais, não está se mexendo, o que, para o desenvolvimento das crianças, é muito importante. Em um momento de pandemia, não têm essas outras opções. É uma questão delicada. Não sabemos o impacto das telas nesse momento. A Coorte está analisando e vai ser interessante ver qual o impacto das telas durante a pandemia.

O estudo aferiu o tempo em geral, mas não o que é acessado durante o período. Quais os próximos passos?

A atividade realizada com as telas é muito importante, nós não medimos neste recorte. A ideia para os próximos estudos grandes é tentar entender quais atividades que podem ser mais prejudiciais para a saúde mental, em curto e longo prazo, e quais podem ser protetoras. O que essa criança está fazendo especificamente nas telas? Outro aspecto que se pode pesquisar é verificar o efeito ruim a longo prazo. Aqui, fizemos um recorte de três anos. O que buscamos neste estudo e na Coorte em geral é analisar fatores de risco e proteção para a vida. Coisas que vão alterar a saúde mental ao curso de sua vida e não necessariamente no mesmo dia em que está acontecendo. Ou seja, dizer que não oferece risco a longo prazo não é dizer que se uma criança usar as mídias por sete horas, ficará bem. Pode ter um efeito ruim a curto prazo, mas não estamos avaliando isso.

A pesquisa tira um pouco das telas a pecha de culpada quando o assunto é depressão e ansiedade?

Escuto muito “poxa, será que não faz tão mal mesmo?”, eu mesma me perguntei. É muito contraintuitivo. Sim, tem a questão do sedentarismo e também do brilho das telas que afeta o sono, mas temos muito enraizado o fator das telas como culpadas contra a saúde mental. E foi interessante não termos encontrado essa relação tão direta como alguns estudos de associação sugerem. Porque, talvez, são fatores que andem juntos, mas o que temos de evidência é que as pessoas que usam mais telas têm problemas de saúde mental. Acabamos assumindo que a tela é que causa isso e não que seja mais um sintoma de que a pessoa não está bem.

A Internet causa o mesmo medo na sociedade que antes havia em relação à televisão?

Aprendemos pouco com as novas tecnologias porque nos apavoramos quando surgem. A maioria dos trabalhos são sempre na linha do “quanto mal faz” em vez de tentar entender o que essa tecnologia traz. O importante é entender qual o comportamento que a pessoa tem dentro de cada mídia, seja internet, telas, redes sociais. Dizem, e eu concordo, que estamos lidando com um tipo muito diferente em relação ao rádio e à televisão porque lida com inteligência artificial. Fala-se que as crianças estão usando. Mas os adultos usam o tempo inteiro. Tem um lado bom. Uma rede social, como o Instagram, por exemplo. Estudos dizem que se é usado para se conectar é positivo, mas se for uma utilização passiva, é um comportamento ruim, que traz mais ansiedade. Há um estudo, ainda em desenvolvimento, que trata da alternância de atividade em celulares: a pessoa que sai do WhatsApp, vai para uma notícia, depois acessa o e-mail e, em seguida, outra rede social. A troca de atividades pode ser indicativo ruim por gerar mais ansiedade. Ou a pessoa é mais ansiosa e, por isso, troca de atividades. Temos que ser mais inteligentes e perceber que são comportamentos complexos. Este é o desafio, sair desse pânico para entender melhor como isso funciona em relação à nossa saúde mental. Coisas complexas não têm causas únicas.


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