Servidores em perspectiva

Servidores em perspectiva

Cientista político e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), André Marenco tem voltado parte dos seus estudos para as políticas públicas.

Mauren Xavier

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Como surgiu o interesse de estudar e comparar as diferentes realidades dos servidores públicos nos países da América Latina? 

Tenho trabalhado nos últimos anos na área de políticas públicas, tanto na graduação quanto na pós-graduação. E há muitos estudos importantes que mostram uma relação entre a qualidade da burocracia (servidores públicos) e a qualidade das políticas públicas e sua oferta. Então, isso nos leva a pensar quais fatores podem contribuir para que possamos ter um serviço público de melhor qualidade. A partir daí, a minha ideia foi revisar a literatura internacional e analisar as condições nestes sete países. Eles foram escolhidos porque são considerados pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) como de média ou alta profissionalização. Assim, com relativa homogeneidade. 

Neste panorama, como o Brasil está posicionado além do fato de estar em discussão uma reforma administrativa? 

O Brasil, juntamente com o Chile, tem no seu âmbito federal as suas administrações mais profissionalizadas. Essa conclusão converge com os dados. Geralmente temos uma ideia de que a administração pública no Brasil é inchada. Essa percepção não está totalmente correta. Se observarmos em termos de proporção em relação os empregos públicos e a relação total de empregos no país, o percentual é de 12,4%. É inferior ao de países como Dinamarca e Suécia, que são campeões de bem-estar e de baixa corrupção. Mas também é inferior ao dos Estados Unidos, que tem uma tradição liberal, e a países como Argentina, Uruguai e Chile, aqui na América Latina. O grande crescimento no número de servidores ocorreu no âmbito dos municípios nos últimos 30 anos, sobretudo a partir da Constituição de 88, que repassou mais serviços aos municípios.

Então, qual seria o ponto mais preocupante? 

É pensarmos na qualificação, que é a relação da qualidade da burocracia e das políticas públicas dos serviços. Enquanto na União cerca de 70% dos servidores têm escolaridade superior, o que é uma taxa alta, nos municípios esse número fica em torno de 44%. Isso ocorre porque a maioria dos municípios é micro ou pequeno e têm dificuldade de atrair candidatos que já têm uma formação técnica superior ou de pós-graduação. Isso nos coloca diante de um desafio, que para mim, talvez seja maior desafio em termos da administração pública, que é como levar a qualificação, dos servidores, para estados e municípios. 

E como pensar uma reforma administrativa? 

Acho que há um erro de foco. O foco dessa agenda sempre tem sido o da redução do número de servidores, mais ou menos o que tentei mostrar é que o número de servidores não é um problema. E ao colocar o foco nessa direção, as propostas de reforma basicamente acabam fracassando. O foco tem que ser outro. Tem que ser na qualidade dos serviços públicos. O que fazer para que tenhamos serviços públicos de maior qualidade, com maior transparência, com maior possibilidade de fiscalização e cobrança pela população. 

A reforma traz discussões sobre mudanças no processo de contratação ou de plano de carreiras diferenciadas. Como o senhor vê esse debate? 

Ao colocar o foco na redução (número de servidores) e na penalização, na possibilidade de extinção linear da estabilidade no emprego, isso provoca reações de categorias e algumas têm força política. E isso termina levando à desidratação, gera um abandono do foco das reformas administrativas. O que é um problema. Essa é uma agenda importante, mas que precisa de fato calibrar e pensar exatamente qual é a sua direção. Temos que pensar porquê existe estabilidade. Ela não é apenas um direito do servidor, mas a ideia de que existe um conjunto de atividades do Estado que deve ser protegida em relação a oscilações e ciclos de governo. Imaginemos, por exemplo, o governo anterior, por suas preferências políticas e ideológicas, talvez desejasse simplesmente extinguir todas as instituições de proteção ambiental. Elas têm maturação de longo prazo. Além disso, há um exemplo que atualmente se dá e acho que é um bom exemplo. Aquele servidor da Receita Federal no aeroporto de Guarulhos (SP) no episódio das joias sauditas, se ele não tivesse estabilidade, provavelmente seria demitido ou sofreria pressões e talvez teria que ceder. Foi a estabilidade que garantiu o exercício da sua correta atividade profissional. Então há um conjunto de atividades que precisam receber esse tipo de proteção. Não significa que elas não devem ser avaliadas, o seu desempenho avaliado. Essa é uma falha e que precisamos avançar. E, inclusive, superar o corporativismo. A contrapartida da estabilidade é o desempenho, não a estabilidade como forma de proteger o mal servidor, mas para proteger a atividade. 

Até porque junto com isso vem aquele estigma de que o servidor ganha demais e trabalha de menos, por exemplo, no sentido de desmerecer a importância desses profissionais. 

É um discurso fácil, como tu disseste, de criminalizar servidores, de usar mal o exercício do serviço público e que ganha sempre visibilidade. E há todo o conjunto de instituições que fazem atividades importantes, como na área da saúde, como durante a pandemia, proteção ao meio ambiente, enfim, há centenas de exemplos altamente positivos que podem ser apresentados e que vão nos dar uma imagem do serviço público brasileiro bastante positivo. Agora, também há uma questão que precisamos pensar e dialogar também com os servidores. Uma das razões para que as reformas não andem está no ponto que elas produzem uma resistência dos servidores. Penso que uma reforma que vá na direção de uma maior capacitação, de uma maior qualificação dos serviços públicos, precisa ganhar o compromisso e a responsabilização dos servidores e de categorias fundamentais. Os maiores avanços na América Latina no sentido da modernização dos serviços públicos ocorreu há cerca de 20 anos no Chile, que foi a criação de um sistema de altos dirigentes públicos. Foi uma mudança em relação ao que seriam os nossos cargos de confiança. Cargos de nomeação política existem no mundo inteiro, o problema é a qualificação deles. No Chile, no governo do presidente Eduardo Frei Ruiz-Tagle, houve um escândalo dos “sobresueldos”, um escândalo de propinas. Naquele contexto, o governo apresentou uma proposta e as duas coalizões (de centro esquerda e de direita) aceitaram. Não se extinguiram os CCs, mas estabeleceu-se uma obrigatoriedade de um sistema de exames. Qualquer pessoa pode fazer o exame e, se aprovado, integra um banco de currículos. Assim, o dirigente público, ao nomear cargos políticos, só pode indicar os oriundos daquele grupo. Com isso, combinam-se duas exigências: o governante nomeia pessoas do seu alinhamento, mas isso recai sobre indivíduos de qualificação técnica.

E isso foi oriundo de uma proposta dos próprios servidores. Acho que é nessa direção que nós temos que avançar. Comprometer o próprio servidor público em um avanço na melhoria e na qualificação e mostrar que isso vai resultar em uma melhor imagem do servidor público e isso vai dar status maiores, com condições de exigir salários maiores. 


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