Sobre viver e sobreviver

Sobre viver e sobreviver

Sobrevivente da tragédia da Chapecoense, Hélio Hermito Zampier Neto comenta como seguiu com a sua vida após o acidente

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Hoje ele é Hélio Hermito Zampier Neto, 37 anos, teólogo, carioca e palestrante. Mas ele já foi Neto, zagueiro da Chapecoense, time de futebol do oeste de Santa Catarina. Era assim conhecido até 28 de novembro de 2016, quando virou um dos seis sobreviventes do acidente com o voo cujo destino era a Colômbia para disputar a Copa Sul-Americana, terminando na morte de 71 pessoas entre jogadores, equipe técnica, tripulação e jornalistas. Em processo contínuo de recuperação das sequelas que resultaram em inúmeras cirurgias na coluna e asma crônica em decorrência da deficiência pulmonar, o ex-jogador tentou seguir na carreira até 2019, mas o corpo não conseguiu se recuperar totalmente das lesões. Diante da nova realidade, Neto decidiu cursar a faculdade de Teologia e hoje investe em palestras contando sobre como o acidente o transformou. Casado, com dois filhos gêmeos de 15 anos e ainda morando em Chapecó, ele está em vias de desenvolver o seu segundo livro.

O que você se lembra do dia do acidente?

Era um voo tranquilo. Eu estava conversando com o atacante do clube, o Bruno Rangel. Ele estava sentado do meu lado. A gente se dava muito bem e costumava sentar sempre juntos. Na verdade, a turma se dava muito bem. Era como se fosse o final do voo. Todo mundo estava meio que dormindo. Eu fiquei escutando música. Na sexta-feira, tive um sonho ruim no qual o avião caía e eu ficava vivo. Então, fiquei com muito medo de ir para São Paulo jogar contra o Palmeiras. Como o avião não caiu, fiquei tranquilo e segunda pegamos voo para a Colômbia, apesar de ter enviado mensagem para a minha esposa de dentro do avião para pedir oração porque senti que era um dia estranho para mim. O Bruno estava me contando sobre os planos dele. A casa que ele estava construindo para a esposa e para os filhos. Logo, ele dormiu. Eu segui acordado ouvindo música, quando o avião desligou por completo e acendeu a luz de emergência.

Lembro que ninguém falava nada. Eu estava sentado no meio do avião, olhei pela janela e vi que uma luz noturna que pisca, não estava piscando. Como ninguém ainda tinha falado nada, percebi que alguma coisa ruim poderia estar acontecendo. Comecei a chorar e a orar. O Bruno Rangel olhou para mim e começou a orar e a chorar também. Era um silêncio, ninguém falava nada, o motor do avião desligado, parecia que a gente estava planando no ar. No fim, começou a tocar um alarme “pi-pi-pi”. Quando começou a cair, tremeu muito. Eu só rezava para Deus, pois sabia que somente Ele poderia fazer um milagre para nos ajudar.

Como foi quando voltou do coma?

Fui o último a ser resgatado. Tive fratura no crânio. Pelo meu estado, minha esposa dizia que eu estava mais para morrer do que para viver. Fui para o hospital em situação crítica, fiquei de 28 de novembro até 11 de dezembro do mesmo ano em coma. O médico, que é meu amigo, sempre diz que viu pessoas em situação melhor e que não sobreviveram. Ele disse que foi a minha fé. Eu só lembro até o momento do alarme. No impacto, eu apaguei. Acordei na Colômbia, em outro país com pessoas falando outra língua. Meu pai, minha mulher, meu irmão mais velho, meu pastor, todos estavam me olhando. A minha lembrança é essa. Não me lembro de quando me acharam. O policial militar que me achou falou que eu estava gemendo de dor.

No momento em que percebeu que o avião estava caindo, o que você fez?

Quando me dei conta de que realmente estava caindo, eu pensei que a vida iria acabar ali. Me vi como um homem impotente, que estava lutando por um sonho junto com todos os companheiros, que estava realizando uma coisa absurda dentro de um clube muito pequeno de Santa Catarina, muito pouco respeitado pelo futebol brasileiro, e que estava fazendo história na Sul-Americana, no Campeonato Brasileiro, ganhando de grandes clubes em Chapecó e sendo muito respeitado. Era inacreditável aquilo estar acontecendo. Eu não vou nem dizer que era o melhor momento da Chapecoense, talvez fosse o melhor momento de um clube de Santa Catarina na história em relação a respeito de adversário, indo para Colômbia disputar uma final onde olhavam e pensavam: “É difícil ganhar da Chapecoense”. Eu estava num bom momento, com estabilidade financeira. Não é um mundo fácil, o mundo de milhões é para poucos e de repente tudo acabou.

Quais sequelas ficaram no corpo?

Sinto muitas dores na região lombar da coluna até hoje, mesmo já tendo feito muitas cirurgias. O mesmo com o joelho: já fiz cinco ou seis operações. O pulmão nunca mais foi o mesmo, foi esmagado pelas ferragens do avião. Uso bombinha, fiquei com uma espécie de asma crônica.

Como foi receber a notícia de que não seria mais jogador de futebol?

Não jogar futebol foi a parte mais fácil disso tudo. O mais difícil foi a perda de todos. O profissional é um produto que tem um prazo de validade. A gente recebe por aquilo que a gente faz, mas quando a gente não tem mais condições de fazer, outros vão entrar no nosso lugar. Seria praticamente impossível voltar por causa das dores e da lesão na coluna. Eu digeri bem, a família sofreu um pouco mais. A esposa e os filhos me viram todo dia, durante três anos, tentando voltar a ser atleta, primeiro com uma rotina para ganhar massa muscular, para depois voltar a correr. Então, quando o médico deu a notícia, foi um alívio. Eu tive meu contrato renovado depois do acidente, fui diretor, mas depois me afastei.

Você se sente um homem transformado?

Quando tudo aconteceu foi um choque para gente. E não só por tudo que aconteceu, mas também porque não é tão simples sobreviver a uma tragédia onde todos os seus amigos morreram e pessoas que foram importantes para sua vida, pessoas que fizeram a diferença contigo no mesmo objetivo. Por isso, o nome da minha palestra é “Sobre viver”, sobre viver como eu vivi, não de sobrevivência, também a sobrevivência, que faz parte, mas esse tema é de como eu vivi. Minhas dificuldades, tristezas, que podem ser vencidas. E essa vitória nunca foi uma vitória singular, tive minha família e pessoas ao meu lado. Estudei Teologia, me formei em 2020 e resolvi usar a minha história para ajudar as pessoas. Sempre fui um homem de fé.

Você já escreveu um livro em 2017 e está desenvolvendo outro, com possível nome de “Um produto nas mãos dos homens e um instrumento nas mãos de Deus”. Pretende contar bastidores do futebol?

Eu já escrevi um livro depois da tragédia, “Posso Crer no Amanhã”, que conta a história da minha vida, que foi de muita dificuldade. Saí da periferia carioca com 17 anos. Agora, pretendo escrever “Um produto na mão dos homens e um instrumento na mão de Deus”, um tema um pouco agressivo. Vou contar os bastidores da minha vida. Muita gente vê o Neto e pensa: “Poxa, está lá em Chapecó, grande jogador, sempre ajudou o clube”. Mas a gente passa algumas coisas calado. A gente vê que se tornou um produto na mão de outras pessoas, como foi o tratamento recebido antes e depois da tragédia. Em alguns momentos, esse mesmo produto se tornou um peso porque eram jogadores improdutivos também, assim como o Jakson Follmann e o Alan Ruschel. Então, era um ídolo para fora, mas um peso para dentro. Isso que quero contar.


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