Tecnologia contra o assédio

Tecnologia contra o assédio

Por Christian Bueller

Christian Bueller

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Tipificado inicialmente como “constrangimento ilegal”, o assédio sexual passou a configurar como crime em 2001. Entretanto, ainda há muita dificuldade em punir o assediador na esfera administrativa, cível ou criminal, sobretudo em razão da dificuldade em se configurar e provar o assédio. Considerando que prints de conversas digitais, muitas vezes, não podem ser inclusas nas denúncias por possibilidade de fraudes, a corregedora-geral da Procuradoria-Geral de Porto Alegre, Clarissa Bohrer, cita como alternativa a ferramenta blockchain, uma tecnologia que usa metadados que não podem ser alterados, possibilitando que a vítima possa comprovar o crime ao proteger a autenticidade da prova.

Por que muitas pessoas, especialmente mulheres, evitam denunciar casos de assédio sexual sofridos?

O processo de assédio sexual é um ilícito administrativo muito delicado, muito complexo. Ele tem duas grandes barreiras. A primeira delas é fazer com que a vítima denuncie, porque é um constrangimento. Então, até a vítima ter coragem de denunciar e levar à frente isso, é um primeiro processo interno. Às vezes tenho a sensação de que grande parte dos casos não aparecem justamente por conta do fato de que essas pessoas não formalizam as denúncias. Elas não chegam. Vencida essa primeira fase, o processo de fato de assédio sempre será a palavra da vítima contra a do agressor. Quanto à denúncia, não se trata de ato muito público, a pessoa faz isso de maneira reservada, ninguém gosta de se expor dessa forma.

Recentemente, em uma palestra sobre o tema, a senhora destacou que a preservação da originalidade e autenticidade da prova é fundamental para garantir que a aplicação de uma eventual pena não seja anulada pelo Judiciário. Quais os tipos de prova consideradas?

Uma é a testemunha, alguém pode ter visto ou eu posso ter comentado com alguém, a chamada testemunha referencial. Mas, é considerada uma prova volátil, que depende de percepção, vem com altas doses de subjetividade e vagueza. Por exemplo, se essa pessoa me contou e é minha amiga, eu já tenho uma visão dela e agirei com o meu conteúdo emocional em cima desse testemunho. E temos a prova produzida no meio digital. Hoje, a Internet encoraja as pessoas a se mostrarem com o seu melhor, que, às vezes, nem é a realidade. Mas ela tem um lado dark, mostrando o pior do ser humano, que se sente em uma terra sem lei. Vem esse lado sombrio.

Ainda assim, muitas provas digitais não são utilizadas por conta de eventuais possibilidades de fraudes nas denúncias, não é?

Sim, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem um entendimento formado de que a prova produzida por WhatsApp não garante o que em direito se chama cadeia de custódia da prova. Quer dizer, tudo pode ser editado: posso excluir mensagem, posso inventar um texto, tudo pode ser alterado, mesmo que a plataforma venha com a criptografia de ponta a ponta. Então, o STJ decidiu que o print do WhatsApp não serve como prova absoluta dentro do processo judicial. Mesmo sendo o único indício que a vítima tem, há também casos de pessoas que inventam situações de assédio sexual para causar um assédio moral do suposto agressor. É preciso ter toda uma psicologia porque o material humano, nesses casos, é delicado e complexo.

Uma alternativa mais acessível à vítima é a utilização de blockchain, tecnologia conhecida em razão dos bitcoins e que vem sendo utilizada nos mais variados segmentos atualmente. Explique como essa ferramenta pode ajudar as pessoas que sofrem assédio?

O blockchain pode usado em um plugin no Google Chrome que faz a coleta de metadados e faz um PDF descentralizado. Ele não é novo, é de 2008, e foi concebido para a questão das criptomoedas. Em alguns lugares já estão fazendo registros civil de pessoas utilizando esta tecnologia. A primeira indicação que se dá à vítima é preservar a prova, porque só com base naquilo é possível buscar alguma condenação para esse agressor. A prova preservada no blockchain é aceita. O novo Código de Processo Civil, de 2015, artigo 411, inciso 2, diz que todos os meios de prova em direito são admitidos, inclusive os digitais. Com esta ferramenta, a prova vai ser imutável. Eu não preciso nem ouvir testemunha nesse processo, que pode se desenvolver de maneira muito rápida. O assédio sexual é crime e, mesmo ocorrendo em uma empresa, onde será feita uma apuração da responsabilidade administrativa, a vítima deve reportar o caso em uma delegacia de polícia.

A maioria dos casos, certamente, ocorre com mulheres, mas qual a porcentagem em relação às ocorrências com homens?

Segundo levantamento divulgado em março deste ano pelo Tribunal de Contas da União (TCU), a partir de 49 casos analisados, 100% dos investigados por assédio eram do sexo masculino e 96,5% das vítimas eram do sexo feminino. Os crimes cometidos no ciberespaço são 90%. Mas a aplicação de pena não foi superior a casa de 50%, muito provavelmente porque esbarrou na questão probatória.

Outro debate dentro deste tema é o assédio sexual que acontece no universo da administração pública. Gera custos pagos pela própria sociedade?

Certamente, essa vítima pode entrar com processo por dano moral contra a administração. Então, João assediou a Maria, ela vai ao Judiciário e diz: “Administração pública, tu me deves R$ 100 mil por conta da prática de assédio sexual no ambiente de trabalho”. Então, isso tem custo. Claro, que a administração, depois, vai lá buscar o valor do João. O dano moral é forte, dependendo da idade da vítima ou de suas condições psicossociais. O Tribunal de Justiça tem uma espécie de tabelamento para dano moral. Esses processos costumam ficar na casa de R$ 30 mil, mas a gravidade do caso também é avaliada. A pessoa assediada começa a não vir mais para o trabalho, por conta de depressão, pânico, vergonha do ambiente. Isto também gera custo à administração. Eu aplaudo essa preocupação do TCU. Não temos estatísticas para divulgar, mas posso dizer, sem medo de errar, que o maior número de casos ocorre com pessoas mais jovens, estagiárias.

Como é o acolhimento de vítimas no Município de Porto Alegre?

Tem a Coordenação de Desenvolvimento e Avaliação Funcional (CDAF), que conta com psicólogas e assistentes sociais. A vítima deve se dirigir a qualquer canal de denúncia. Em um ambiente de trabalho, a pessoa deve se dirigir à chefia. A Capital tem, ainda, o “me-OUV”, sistema de ouvidoria da prefeitura, caso ocorra em algum setor da administração municipal. Organizações públicas e privadas têm se engajado nessa pauta. O assunto também é pedagógico, pois tem um efeito multiplicador muito grande a partir do momento em que se penaliza alguém por isso.


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