Tudo como se fosse o último dia

Tudo como se fosse o último dia

Confrontando um diagnóstico de doença grave, ele compartilha como a escrita se tornou uma jornada terapêutica, levando-o a apreciar cada momento como se fosse o último.

Rodrigo Thiel

O escritor Heitor Bergamini

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Aos 66 anos, o escritor Heitor Bergamini passou grande parte de sua vida atuando como executivo de uma das maiores empresas siderúrgicas do Brasil. A paixão pela arte surgiu ao longo deste período e, após sua aposentadoria, passou a explorar a escrita e a arte visual. Autor de livros relacionados ao mundo dos negócios, como “Gestão de Carreiras – as 5 Ferramentas Essenciais” e  “Histórias de Marketing e Vendas”, desde 2022 Heitor passou a dar mais atenção ao cotidiano, com textos que abordam o dia a dia com humor e leveza, como visto no livro “Quarentenas”.

Entretanto, o diagnóstico de um câncer no início deste ano fez seu inconsciente despertar um olhar mais intimista e profundo para a finitude da existência. Afinal, morte e vida não são antônimos, mas sim complementam um ao outro. Seu mais recente livro chama-se “Agri Doce”.

Como surgiu a ideia de escrever o livro de crônicas “Agri Doce” e como é sair de uma vertente de negócios para escrever obras com um viés mais literário?

Eu sou um homem de negócio, me criei trabalhando em grandes empresas por décadas. Ainda sou consultor sobre coisas de gestão. Os dois primeiros livros são sobre isso. O terceiro livro foi um livro de crônicas humorísticas, crônicas diárias, do cotidiano, de leituras rápidas. Mas antes até de eu ficar sabendo o que estava acontecendo, eu já vinha escrevendo algumas coisas estranhas, sobre a vida, sobre aproveitar os momentos, aproveitar a família, aproveitar os amigos. Eu já estava escrevendo rapidamente algumas crônicas sobre isso e fiquei sabendo que estava doente, diagnosticado com uma doença grave. Aí eu pensei em passar este momento que eu estou vivendo para um livro em formato de crônicas. É sobre como estou enxergando a minha doença, pois tenho uma forma de vê-la quase que como uma dádiva. De repente fiquei sabendo que tenho pouco tempo. Mas ainda bem que fiquei sabendo. Então isso fez com que eu remodelasse toda a minha vida. Eu vivo cada dia como se fosse o último. Eu acordo de manhã, sento na cama e agradeço que tenho mais um dia. E assim levo a minha vida.

Faço tudo o que eu quero fazer. Viajo, continuo escrevendo, tenho uma galeria de arte, sou escultor. Faço tudo como se hoje fosse meu último dia. Como se o meu jantar fosse o meu último jantar. Aprecio isso. E é o que tento passar para o livro. Muita gente não vai gostar, eu sei disso, porque o começo dele é muito pesado. Porque eu falo de coisas de morte e de vida. Mas se eu ajudar uma pessoa, eu já me dou por satisfeito.

Na obra “Agri Doce”, principalmente na crítica do professor e escritor Sergius Gonzaga, é tratada a necessidade de usufruir o dia, o carpe diem. Qual a importância disso e como aguçar este olhar para o cotidiano?

Nós ganhamos um presente que é a vida. E às vezes a gente trata como se isso fosse um castigo. A gente olha a vida pelas dificuldades. Eu não olho mais a vida por dificuldade. Olho pelo prazer. Pelo que posso fazer, pelo convívio, pelo abraço, pelo beijo. Por poder conversar com um amigo. Conversar com meus filhos. Então é uma mudança. A gente não consegue mesmo aproveitar todos os dias. A gente acha que veio para essa vida para sofrer. E nós não viemos para sofrer. Viemos para nos divertir. E isso aqui é passageiro, então te diverte e faz as coisas que quer fazer. Você não pode ser escravo de alguma coisa. Você tem que ser escravo da vida. De fazer o bem para si e para os outros. Então, mudei essa visão de vida e de morte com a doença, que me fez pensar que tenho que aproveitar o dia a dia.

“Agri Doce” é também uma narrativa da sua luta contra um câncer. Como escrevê-la te ajudou?

Esse livro eu comecei a escrever sem saber que eu estava escrevendo. Porque, outra coisa, eu sou atleta. Eu já corri maratona. Eu faço tudo que é tipo de esporte, surf, paraquedismo. Eu sou piloto de avião. E estava me preparando para correr um Ironman Triathlon com meu filho, que é campeão dessa prova. Pensei em correr como sênior e estava na praia treinando para isso. E nesse período escrevia diariamente. Quando voltei para cá (Porto Alegre) em março, fiquei sabendo que estava doente. Depois disso, fui olhar o que escrevi lá atrás e, olhando as crônicas do passado, eu já estava falando da morte. Como quero morrer, como acho que é bom morrer. Eu não sabia de nada e já estava escrevendo. Quer dizer, o meu subconsciente já estava me dizendo que eu tinha começado a me preocupar com outras coisas. Então, quando você ler, vai ver que tem algumas crônicas que são datadas de dezembro a fevereiro. Esse livro me ajudou muito a pegar essa parte que eu já vinha escrevendo e colocar como é que eu estou mudando o meu dia a dia. Colocar para as pessoas que vão ler como é que você encara uma coisa dessa, como muda o seu dia a dia. Esse câncer está querendo me ferrar, mas eu não me importo com ele. Eu não quero nem saber que eu tenho ele.

Você já está trabalhando em algum outro livro de crônicas para a coleção?

Tenho um livro de negócio pronto que talvez não lance. Estou querendo escrever um livro sobre a doença, como descobri, como tratei, passo a passo o que está acontecendo comigo. Eu era um cara que corria todos os dias 10 km e hoje não caminho 100 metros. Então são mudanças que acontecem. Mas tu tem que se adaptar. Se não consigo correr, tudo bem, vou lá e faço uma caminhada. Fui visitar meu filho, que mora no exterior, e o médico disse que não era para a gente viajar. Eu e minha esposa fomos igual. É claro que posso. Não fiz a viagem dos meus sonhos, mas fiz uma viagem na qual fazia alguma coisa e voltava para descansar. Fui me adaptando. Tudo o que faço hoje é adaptado à doença. Não sou pretensioso para achar que vou fazer um guia. Eu sou pretensioso para dizer: olha tenho uma história para contar. Tudo que posso fazer, que é o que é a quimioterapia, faço. Faço e não reclamo. Não reclamo que tenho efeitos colaterais. Isso aí a gente dá um jeito.

Na sua visão, como o gosto por arte e cultura influencia na capacidade de gestão e a tomada de decisões nos negócios?

Quando você vive o mundo dos negócios, você vive em uma bolha que não consegue enxergar. Você só quer saber como é que tá a ação, o dólar, a Taxa Selic, onde você investe, qual é o retorno sobre o investimento. É disso que você fala o dia inteiro, você não consegue enxergar outras coisas. Eu passava minha vida dentro de um avião. A decisão da minha saída da empresa foi porque, no dia que fiz 50 anos eu estava indo de Paris para a Coreia do Sul na noite. Eu pensei: “Poxa, meia-noite, o que estou fazendo 50 anos aqui? Meu filho lá em São Paulo, meu cachorro, minha esposa. O que estou fazendo da minha vida?”. Ali me dei conta de que não dá para viver uma vida assim, de não aproveitar. Você precisa aproveitar a vida. E a arte te traz um conhecimento e uma oportunidade de você abrir a mente. Você se abre para coisas que não são estruturadas. A arte não é uma coisa estruturada. Você fica com a mente livre para pensar o que você quiser, para voar, para imaginar, para fazer e desfazer. Aí que eu acho que a arte ajuda muito. Não só a arte, mas a cultura, o conhecimento. Eles te ajudam a ter uma cabeça mais livre, para se livrar um pouquinho daquela bolha do business que te consome.

'Nós ganhamos um presente que é a vida. E às vezes a gente trata como se isso fosse um castigo. A gente olha a vida pelas dificuldades. Eu não olho mais a vida por dificuldade. Olho pelo prazer. Pelo que posso fazer, pelo convívio, pelo abraço, pelo beijo.'  Heitor Bergamini.


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