Ler Misto-Quente é voltar no tempo

Ler Misto-Quente é voltar no tempo

Chuteiras pretas, meias pretas e joelheiras formavam o conjunto que me transformava em Lev Yashin, o Aranha Negra

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Nasci em Erechim mas fui criado em Garibaldi, onde desembarquei com quatro anos.
Estudei no Colégio Santo Antônio, só para meninos. 
No Colégio Santa Inês, da freiras, estudavam as meninas. 
Só muito depois nos misturaram.
Meu passatempo preferido era futebol.
Jogava todos os dias.
Quando digo todos os dias, entenda-se todos os dias: com sol, chuva, água até as canelas, no barro...
De domingo a domingo. 
Aqui está um exemplo de que a repetição não leva necessariamente ao aperfeiçoamento. 
Ao cair da tarde a turma ia chegando ao campinho. 
O dono da bola e o melhor jogador eram encarregados de ir escolhendo, um de cada vez, os times. 
Como já se vê o dono da bola tinha vaga certa. Quem também tinha lugar garantido eram os goleiros. 
Ninguém queria ser goleiro. 
Sobrava sempre para os mais gordinhos, os mais desajeitados e os ruins de bola. 
Quando nem estes queriam, havia rodízio no gol.
Obviamente havia exceção. 
Eu, por exemplo. 
Volta e meia ia para o gol. Gostava e me considerava  bom goleiro. 
Jogava de calção preto com almofadas ao lado. 
A camiseta era preta com almofadas nos cotovelos. 
Chuteiras pretas, meias pretas e joelheiras formavam o conjunto que me transformava em Lev Yashin, o Aranha Negra. 
Misto-Quente é um livro escrito por Charles Bukowski, romancista estadunidense nascido na Alemanha. 
Ler Bukowski é voltar no tempo. 
Na obra, ele cria um personagem, Henry Chinaski, para relatar fatos que, na verdade, parecem ter caráter autobiográfico .
“Havia dois períodos de recreio. Os alunos das primeiras séries se reuniam em torno de sua própria quadra de beisebol e escolhiam os times. Eu e David permanecíamos juntos. 
Era sempre assim. Eu era o penúltimo a ser escolhido, e David, o último. Assim, sempre jogávamos em times diferentes.
David conseguia ser pior do que eu. Com seus olhos oblíquos, sequer conseguia ver a bola. No meu caso era falta de prática. 
Eu nunca jogara com as crianças da vizinhança. Eu não sabia como pegar uma bola ou como rebater. Mas eu queria aprender...”
Dia de aula era dia de briga.  
Qualquer motivo um servia.  
A expectativa era geral. 
Tinha até torcida. 
As brigas aconteciam sempre na saída do colégio. Entre mortos e feridos, salvavam-se todos.   Genial, Bukowski usa seu personagem principal,  Henry Chinaski, para lembrar: 
“As lutas seguiam de maneira ininterrupta. Os professores pareciam não saber nada a respeito. E sempre tinha problema quando chovia. 
Qualquer garoto que trouxesse um guarda-chuva ou viesse com uma capa de chuva era discriminado. Nossos pais, em sua maioria, eram pobres demais para comprar esse tipo de coisa. 
E caso o fizessem, tratávamos de esconder bem os objetos entre os arbustos. 
Qualquer um que fosse visto carregando um guarda-chuva ou vestindo uma capa de chuva era tido imediatamente por maricas. 
Era espancado na saída. 
A mãe de David fazia com que ele carregasse um guarda-chuva mesmo que o dia estivesse apenas um pouco nublado.”


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