No Inter: “Basta discordar para que pessoa seja tratada como traidora, conspiradora e sabotadora”

No Inter: “Basta discordar para que pessoa seja tratada como traidora, conspiradora e sabotadora”

De ex-integrantes do Povo do Clube: “Como num tribunal de exceção, foi aprovado o afastamento liminar de integrantes do movimento, por conta de supostas condutas inadequadas”

Hiltor Mombach

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Nota de integrantes do Clube do Povo, agora ex-integrantes

“A cor encarnada representava, naqueles tempos, o símbolo da luta contra o despotismo e a tirania.”
Assim era descrita, no dia do cinquentenário do Sport Club Internacional, a cor e a razão do nosso manto sagrado pelo então maior jornal do Rio Grande do Sul naquele 4/4/1959, o Correio do Povo.
Hoje, para além de centenário, o Clube do Povo vem perdendo a cada ano a essência que o fez ser assim conhecido e respeitado mundo afora.
O vermelho, que o jornal chamou de encarnado, já não é mais tão importante. Podemos entrar em campo de laranja, preto e até de … verde.
O Beira-Rio já foi iluminado até de azul e suas luzes se acenderam em cores diversas para comemorar um chá de fralda de membro da direção.
O povo humilde, que deu vez à célebre faixa estendida nas arquibancadas desde o saudoso Eucaliptos - “O Povo fez o Inter” -, já não vê mais no Gigante a sua segunda casa, que ele mesmo ajudou a construir. Os nossos símbolos são atacados e vilipendiados e até o glorioso Saci, nosso mascote, um balauarte de resistência da cultura popular brasileira no meio cada vez mais elitizado do futebol, já foi alterado e branqueado para se tornar mais acessível e agradável a certo público que nada conhece das nossas tradições.

Contra tudo isso, no ano de 2012, surgiu um movimento popular, formado por gente da arquibancada do Beira-Rio, que vinha até mesmo da nossa querida coreia, de tantas lembranças bonitas, e que se insurgia naquele momento contra o processo de despopularização do Inter.
O Povo do Clube não tinha barreiras e não exigia credenciais para aceitar seus membros e membras, bastando que expressassem o mesmo amor pelo Inter e pela sua história de clube popular que tinham os torcedores e torcedoras do Clube dos Negrinhos, como foi chamado à época dos 50 anos.
E assim, com gente de todos os matizes, de todas as cores, de todos os extratos sociais e econômicos, o Movimento da Torcida Colorada se impôs diante do conservador e por vezes até reacionário ambiente político colorado.
Se revolução significa alterar profundamente o estado das coisas, não foi outra coisa que fez o Povo do Clube já nos seus primeiros anos de existência, ao levar para dentro do Conselho Deliberativo pessoas que jamais chegariam lá por outro meio.
Jovens, estudantes, trabalhadores braçais, operários, homens, mulheres, cadeirantes, pretas, brancos, enfim, todos e todas tinham vez e voz no movimento, e podiam ter as mesmas aspirações, não importando a sua origem familiar ou social.
Mais uma vez, bastava amar o Inter e se dispor a lutar pela retomada das nossas origens populares que era bem-vindo e bem-vinda ao Povo do Clube e à até então hermética política do clube, formada há muito tempo por gente de “pedigree”, vinda do high society, com muito dinheiro e /ou com grande influência social e política. A partir do Povo do Clube o ambiente político do Inter se renovava de fato e começava a recuperar a história e a motivação que fizeram os irmãos Poppe e alguns amigos a fundarem no longínquo 1909 um clube de futebol para o povo trabalhador da cidade, que era alijado da participação nas outras agremiações.

Fiel à luta contra a tirania e o despotismo, as ações do Povo do Clube se pautavam pela mais absoluta democracia e respeitando o critério máximo da horizontalidade e do assembleísmo. Por vezes o pau quebrava na assembleia, quase literalmente, mas ao final, em vez de vencedoras e vencidos, o que havia era um grupo de coloradas e colorados confiantes e seguros da decisão tomada, que, não havia dúvidas, era a melhor para o Inter e sua torcida. Erros aconteciam, claro, mas nunca por omissão, e sempre que eram detectados, corrigiam-se os rumos e seguia-se a caminhada.
E assim o Povo do Clube se fez grande, chegou ao Conselho de Gestão e é hoje o maior movimento político do Internacional e um dos mais relevantes no cenário do futebol brasileiro, sendo respeitado nos grandes centros e entre os grandes coletivos de torcida.

Feito esse breve histórico, já é possível um corte para retratar um momento específico.
O dia é 11 de janeiro de 2024, menos de uma semana após a posse do Conselho Deliberativo, órgão em que que o Povo do Clube agora detém a hegemonia, se consideradas as alianças políticas, e do Conselho de Gestão, que conta com um vice-presidente eleito pelo movimento.
Realiza-se, em meio virtual, como pedem os novos tempos, a assembleia convocada para fazer uma avaliação das condutas de alguns e algumas integrantes durante a campanha eleitoral.
É estranho que um movimento de caráter e procedimentos baseados na horizontalidade se proponha a fazer esse tipo de reunião avaliativa, mas dado o tamanho que atingiu e a diversidade de pensamentos da militância, é aceitável.
Entretanto, o que era para ser uma assembleia democrática e com a participação livre de todas e todos, se transformou numa sessão inquisitorial e de caça às bruxas que fariam o General MacArthur corar.
Como num tribunal de exceção, foi aprovado o afastamento liminar de integrantes do movimento, por conta de supostas condutas inadequadas.
A excrescência normativa e jurídica é tal que a Comissão de Ética e Disciplina passa a atuar como órgão recursal, a fim de homologar (e a negativa é impensada) uma punição arbitrária que sequer assegurou às condenadas e aos condenados (houve de fato condenações) o direito ao devido processo legal e à ampla defesa, princípios maiores da nossa Carta Constitucional.

Este é apenas um episódio que retrata a transformação do Povo do Clube de um movimento amplo, plural, democrático e horizontal em um grande grupo de pessoas que seguem as diretrizes de um grupo reduzido que determina o que é certo e o que é errado, usando nas suas avaliações e decisões os critérios mais despóticos e tirânicos.
Hoje, basta que discorde de uma posição levantada por alguém da elite diretiva do movimento para que a pessoa seja tratada como traidora, conspiradora, sabotadora e outros adjetivos ainda mais pesados.
A ameaça de suspensão e até mesmo de expulsão sumária, com a supressão de todas as instâncias, como se viu no caso relatado, é permanente.
Uma espécie de messianismo se abateu, de forma que apenas uma pessoa é tida com habilidade e capacidade para fazer a representação e levar os projetos do movimento em frente.
Quem se acha no direito de questionar essa autoridade suprema é logo perseguido/a pela tropa de choque e acusado/a de tudo aquilo que se apontou antes, além, é claro, de estar agindo motivado pelo ego elevado e por inveja daquele que foi ungido com a sabedoria inquestionável.

Assim, nós, que subscrevemos esta carta, registramos aqui a preocupação com o futuro do Inter, porque entendemos que se internamente o Povo do Clube age dessa maneira, não fará diferente na gestão do clube, na qual tem participação forte e decisiva, que deita raízes nas tentativas de adesão ao projeto Alessandro Barcellos de poder já na eleição de 2020 e que agora, no último pleito, se consolidou com a chapa vencedora, que, inclusive, subverteu a decisão coletiva de concorrer em outra chapa.

Não passaremos à história como coniventes e partícipes desse processo de degradação e de destruição das bases populares que construíram a grandeza do Sport Club Internacional. Anunciamos neste ato a difícil, porém necessária decisão de desligamento coletivo do Movimento O Povo do Clube, que ajudamos a construir.
E ao fazermos isso, dando publicidade à torcida, inclusive com a divulgação nos meios de impresa, reafirmamos o nosso compromisso com o próprio movimento, porque, enfim, não fomos nós que mudamos.
Pelo contrário, mantemos intactos os nossos princípios e a nossa disposição em lutar pela repopularização do Inter, como era no início e durante boa parte da sua trajetória, e que agora vemos seriamente ameaçada pela submissão do único movimento que poderia levar essa luta a bom termo, mas que, para nossa grande tristeza e apreensão, capitulou e sucumbiu ante o canto da sereia, que oferece poder em troca do abandono da essência e da entrega da alma.

Que tenhamos força para seguir na luta contra a tirania e o despotismo! Sigamos firmes e fiéis ao Manifesto do Povo do Clube.

Que possamos nunca nos afastar da busca por um Inter popular, plural e que acolha a todas e todos que partilharem o sentimento de amor ao Clube do Povo!

Viva o Internacional!

Viva o Clube do Povo!

Nossa camisa sempre será vermelha!"

Assinam

Altemir Luis de Oliveira
Cintia Florit Moura
Cristina Dorneles
Edinei Moisés Hoff
Gino Rafael Volkart
Lenize Maria Soares Doval
Luiz Portinho
Marcelo Melo
Pablo Andre Flores
Paulo Roberto Carvalho dos Santos
Rodrigo Navarro Lins Aguiar
Sandro Luiz Silva da Silva
Thiago Neibert


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