1964, golpe midiático-civil-militar

1964, golpe midiático-civil-militar

Imprensa foi intelectual orgânico do golpe

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A mídia (na época se dizia imprensa) colaborou na preparação do golpe militar desfechado no Brasil há 50 anos, em 31 de março de 1964. Mais do que isso, serviu como intelectual legitimador da operação que levou à queda do presidente João Goulart. A imprensa atuou como “intelectual orgânico” do golpe, dito militar, que derrubou Jango. O marxista italiano Antônio Gramsci consagrou a categoria intelectual orgânico: “Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um mundo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político: o empresariado capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito” (...)

A imprensa brasileira cumpriu rigorosamente esse papel na preparação e legitimação do golpe de 1964. Usou todo o seu prestígio para convencer parte da população, especialmente as classes médias, a aderir aos propósitos das elites econômicas vinculadas aos interesses do capital internacional. O trabalho intelectual dos jornalistas consistiu numa operação de guerra retórica para desqualificar as “reformas de base” de Jango como sendo antimodernas, retrógradas, inexequíveis, demagógicas, populistas e, suprema chantagem da época, comunistas. Mais tarde, depois do AI-5 e da introdução da censura nas redações, parte dessa imprensa trabalharia para alterar as narrativas sobre si mesma de maneira a ter um novo e mais bonito papel no regime militar. O jornal “O Estado de S. Paulo” gosta de relembrar os épicos tempos em que publicava receitas de bolo ou poemas de Camões nos espaços de matérias censuradas. Nem a censura, porém, extinguiu o apoio no essencial de jornais como o “Estadão” aos generais ditadores.

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O mundo vivia a chamada “Guerra Fria” e esse confronto global sem trégua e quase sem limites, salvo o das armas nucleares, entre o bloco capitalista – liderado pelos Estados Unidos – e o bloco comunista – conduzido pela União Soviética – serviu de álibi para a construção do imaginário necessário à instalação de uma ditadura no Brasil. Os jornais agitaram a bandeira do perigo vermelho como uma ameaça capaz de assustar a população e gerar um clima favorável à intervenção militar, organizada com a ajuda de civis, entre os quais políticos e empresários ligados ao capital internacional, e apoio norte-americano, como demonstrou o historiador René Armand Dreyfus (1981) em seu magistral estudo sobre a preparação do golpe.

Dreyfus dá os nomes das empresas e dos empresários que se articularam para corroer o poder dos chamados “populistas”: “As várias organizações da sociedade civil e política foram reconciliadas como expressão da consciência coletiva de classe pelo núcleo organizado do bloco multinacional e associado em seu estágio militante, desenvolvendo conjuntamente formações ideológicas e políticas capazes de alcançar seus objetivos estratégicos, traduzindo-os em ação política e estabelecendo a si próprias finalmente no poder. Essa foi a segunda fase, a do ‘transformismo’ de grupos inteiros da burguesia que se transferiram para o campo modernizante-conservador militante. O segundo período abarca os três anos de João Goulart no governo, de 1961 a 1964, período este em que as novas forças socioeconômicas, em seu anseio de poder político, tentaram destituir o Executivo de sua autoridade e arrancar das forças populares o ponto de apoio que elas haviam conseguido na condução dos assuntos estatais”.

A mídia aderiu a esse “campo modernizante-conservador militante”. Dreyfus situa como “intelectuais orgânicos do novo bloco econômico” empresários e tecnoempresários, a tecnoburocracia e oficiais militares da Escola Superior de Guerra: “A ESG incorporou em solo brasileiro as ideias e as atitudes maniqueístas dominantes no cenário internacional da Guerra Fria. Como uma instituição, a ESG encorajou dentro das Forças Armadas normas de desenvolvimento associado e valores empresariais, ou seja, um crescimento cujo curso industrial foi traçado por multinacionais e um Estado guiado por razões técnicas e não ‘políticas’. Esse Estado seria estável por intermédio do autoritarismo político incorporado na doutrina de Segurança Nacional. Ideologias americanas de ‘construção nacional’ foram disseminadas entre as Forças Armadas Brasileiras e reforçadas pela doutrina empresarial”. Faltou situar, na condição de protagonista ou de ator de primeira linha, a imprensa (mídia) como intelectual orgânico militante da modernização conservadora autoritária civil-militar.

Essa perspectiva, contudo, não escapou ao exame de Dreyfus, que dedica um capítulo à “Ação de classe da elite orgânica: a campanha ideológica da burguesia”, onde analisa o que chama de “guerra psicológica através de rádio e televisão” e “guerra psicológica através de cartuns e filmes”. Em 1962, “visando a moldar a opinião pública a seu favor até as eleições, O IPES produziu quinze programas de televisão para três canais diferentes, o que lhe custou 10 milhões de cruzeiros (...) José Luiz Moreira Alves propôs entrevistas a serem realizadas por jornalistas selecionados de Recife, Paraná, Rio, São Paulo e outros centros-chave e cobrir os quatro cantos do país com as mensagens políticas de orientação ipesiana. Os entrevistados teriam de ser pessoas de renome nacional. Os jornalistas então submeteriam um questionário fornecido pelo IPES sobre problemas como o ‘Custo de Vida, a ‘Aliança para o Progresso’, ‘Educação’ e ‘O que você pensa sobre uma posição de centro?’, cujas respostas, em linhas gerais, eram preparadas com antecedência”.

 Na lista de entrevistados confiáveis estavam, entre outros, o jornalista e político Carlos Lacerda, o antropólogo Gilberto Freyre, a escritora Rachel de Queiroz, o banqueiro Clemente Mariani, os deputados gaúchos Daniel Faraco e Raul Pilla, o proprietário do jornal “O Estado de S. Paulo”, Júlio de Mesquita Filho, o presidente da Varig, Rubem Berta, e o prefeito de Porto Alegre Loureiro da Silva. IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) dividiram o trabalho de lavagem cerebral da população brasileira: “O IBAD mostrava-se muito ativo no sul do país, especialmente por meio da TV Paraná, onde mantinha dois programas-chave (...) A rede de propaganda geral e doutrinação do IPES se incumbia de fazer circular e retransmitir por todo o país material para a televisão que se produzia no Rio e em São Paulo, fazendo um bom uso das linhas aéreas, estações de televisão e outras agências amigas”. Tudo foi previsto: “O rádio era um poderoso meio de doutrinação geral e um valioso foco para se montar ações ofensivas contra o Executivo, principalmente em um país com massas de pessoas pobres, sem condições de terem televisão”. Preparação meticulosa.

Nada foi deixado ao acaso: “Em 1961, o IBAD apresentava programas de rádio em trinta e quatro das principais cidades. Em julho de 1962, ele tinha cinquenta e um programas em horários nobres durante a semana e transmissões especiais nos fins de semana. No auge das suas atividades, dispunha de mais de oitenta apresentações semanais no rádio, para todo o país, nos horários especiais. No apogeu da campanha anterior às eleições, financiava mais de trezentos programas diários praticamente controlando o horário nobre das estações de rádio do país. Através de 82 estações, transmitia programas como ‘Congresso em revista’ e ‘Semana em revista’. Produzidas em linguagem popular, tais apresentações levavam aos ouvintes os pontos de vista da elite orgânica que, por sua vez, também formava sua própria ‘Cadeia de Democracia’, compreendendo mais de cem estações de rádio em todo o Brasil. De outubro de 1963 até o golpe de abril de 1964, as estações de rádio dessa rede organizada por João Calmon (dos Diários Associados), entre outros, entravam exatamente no mesmo horário em que as do líder trabalhista Leonel Brizola, interferindo assim efetivamente na sua transmissão e desfechando fortes ataques à esquerda e ao trabalhismo. Ainda segundo Dreyfus, O IPES cooptou Raul Brunini e a sua Rádio Mundial, do Rio de Janeiro, dona de poderosa audiência, assim como buscou o apoio de Alziro Zarur, “político populista cristão de direita, que causava grande impacto nas favelas urbanas e com penetração nos setores da umbanda”.

As campanhas tentaculares do IPES espalharam cartuns e charges nos jornais “O Globo”, “O Dia”, “Luta Democrática” e até na “Última Hora”. O “Diálogo Democraticus” tornou-se moeda corrente: enchia os cofres dos veículos amigos e moldava imaginários. Filmes ideologicamente sob medida chegavam aos cinemas de cada cidade. O Serviço Social da Indústria (SESI) colaborava na distribuição e exibição desses filmes. Empresas como Mesbla, Caio (setor de transportes) e Mercedes Benz ajudavam o IPES com infraestrutura, logística e deslocamento. O programa de televisão de Silveira Sampaio, voltado para “atualidades populares”, antecipava a noção de viralidade. O documentarista Jean Manzon produziu para o IPES filmes com alto teor ideológico e baixa importância estética, entre os quais “Criando homens livres”, “O que é o IPES?” e “Nordeste problema nº 1”. Havia também obras edificantes intituladas “Que é democracia?”, “Asas da democracia”, “Papel da imprensa livre”, “Papel da livre empresa” e “Deixem o estudante estudar”. O IPES era uma instituição de “estudos sociais” fundada em 1961 pelos empresários Gilbert Huber (Listas Telefônicas Brasileiras), Glycon de Paiva, Paulo Aires Filho (Instituto Farmacêutico Pinheiros) e João Batista Leopoldo Figueiredo (ex-presidente do Banco do Brasil). Bem irrigado com verbas das elites nacionais interessadas em fomentar conspirações, ocupava 13 salas do edifício Avenida Central, no Rio de Janeiro. Em 1963, editou 280 mil exemplares de livros de propaganda e 2 milhões 500 mil panfletos de intoxicação ideológica (dados disponíveis em CROPANI, 1986). O golpe foi construído em rede nacional.

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Em 2019, o intelectual orgânico da nova direita é Olavo de Carvalho. As redes sociais são o seu instrumento de lavagem cerebral.


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