A única vez que vi Fidel Castro

A única vez que vi Fidel Castro

publicidade

Fui duas vezes a Cuba.

Mas só vi Fidel Castro em Paris.

Eu era correspondente na França.

Publiquei, na época, este texto:

 

Tapete vermelho para Fidel Castro

 

     O jornal Libération não hesitou: "Depois de Copenhague, tapete vermelho em Paris para Castro". Título de capa. Pela primeira vez desde que tomou o poder em Cuba, no longínguo ano de 1959, Fidel visita a capital francesa. François Mitterrand, em plena decrepitude, recebeu-o, ontem, para um almoço de honra no palácio de l"Élysée e hospedou-o em Marigny, residência oficial destinada aos hóspedes de marca.

Em traje civil, o guerrilheiro empoeirado discursou, à tarde, na Unesco, organismo responsável, através do diretor-geral Federico Mayor, pela sua vinda à França. O todo-poderoso cubano brilhou, aclamado pelos funcionários da casa, que gritavam "Fidel, Fidel...", sob o respaldo das Nações Unidas e com o aval do casal Mitterrand. Danielle, a esposa do presidente, afirmou que Castro "nada tem de um ditador". A primeira-dama acrescentou: "O regime cubano realizou o máximo que o socialismo podia fazer", especialmente na área da educação.

François, num momento de sinceridade cínica, explicou que se tivesse de tratar apenas com os governantes de nações que respeitam os direitos humanos não sobraria muita gente para encontrar. Fidel Castro foi desculpado pela podridão geral. Mitterrand atacou ainda a estupidez do bloqueio norte-americano contra Cuba.

Nenhuma palavra a respeito de prisioneiros políticos, tribunais militares em tempo de paz, ausência de pluralismo e de eleições livres,etc.

Na Unesco, Fidel leu um discurso de 11 páginas - depois de ter sido elogiado por Mayor, que contraditoriamente só falou de liberdade - e mostrou, feita a leitura das entrelinhas, que é um personagem da "história universal da infâmia". Para ele, "Cuba é um país soberano de mulheres e homens cultos, dignos e irrenunciavelmente livre". Talvez para morrer no mar fugindo da grande ilusão.

INFANTE - Eterno, o ditador criticou o imperialismo americano e o papel da ONU (de fato uma organização putrefata) na dominação do mundo pelos Estados Unidos e clamou pertinentemente pela abolição de direito de veto, "privilégio anacrônico", do seu Conselho de Segurança. Ecologista, condenou o capitalismo pela destruição do Planeta, esquecendo-se dos estragos provocados pelos países do socialismo real, fontes inesgotáveis de poluição, cujos efeitos permanecerão por muito tempo.

Disparar contra o liberalismo selvagem para evitar de falar sobre a ditadura cubana, eis a estratégia de Fidel. O incansável orador descreveu o paraíso tropical, "pobre mas digno", que comanda, onde não há fome, nem desemprego, nem consumo de drogas, nem excluídos e nem discriminação racial ou sexual. Pobre Reynaldo Arenas. Infelizmente para o genial mentiroso um grupo de manifestantes esperava-o na frente do prédio da Unesco com faixas e palavras de ordem do tipo "Fidel, assassino" e "Prêmio Stálin para Castro".

Troféu longevidade, hipocrisia, totalitarismo e infâmia.

Um "valente" castrista resolveu enfrentar os descontentes e, no melhor estilo Collor, manga da camisa arregaçada, mostrou-lhe um "braço de força", uma "banana". Estourou a briga. A polícia salvou o provocador do massacre. Fidel, em todo caso, não pôde escapar ao bombardeio pesado do compatriota Guillermo Cabrera Infante. O escritor, exilado em Londres, atirou de bazuca, em artigo publicado por Libération , sobre "o inimigo do povo".

Cabrera Infante não compreende como a França "da liberdade, da igualdade e da fraternidade" aceita legitimar um ditador. E lamenta a participação da Unesco nessa farsa. Implacável, lembrou que a rainha da Inglaterra acolheu o casal Ceaucescu. Os carrascos da Romênia, completou, roubaram até os trincos das portas do palácio onde dormiram. Conselho ferino do autor de Três Tristes Tigres ao mordomo de Mitterrand: "Contar as facas e os garfos antes que Castro se sente à mesa".

PARADOXOS - Fidel leu, antes de fugir dos jornalistas, que o povo cubano não se renderá jamais por "preferir perder a vida a perder a pátria". Cabrera Infante conta uma anedota da Ilha. Fidel Castro grita: "Pátria ou morte!". A população espanta-se: "Qual é a diferença?". O escritor não teme ser chamado de reacionário, nem se deixa seduzir pela retórica vazia e fulmina: "Castro tornou Cuba mais pobre do que o Haiti".

Em busca de investidores, Fidel veio conversar com empresários franceses. Honrado pelo presidente da Assembleia Nacional e, na Bourgogne, pelo industrial e amigo Gérard Bourgoin, tudo encantou-o. No rastro do viajante sereno espalha-se a sombra do fato que Cuba, no último 7 de março, foi novamente condenada pela Comissão de Direitos Humanos da ONU reunida em Genebra. Um detalhe na cacofonia das Nações Unidas.

No centenário da morte do herói cubano José Marti, homenageado pela Unesco, Fidel estava obrigado a citá-lo: "Ser culto é o único modo de ser livre".

Guillermo Cabrera Infante prefere outra frase do mesmo Marti: "Do tirano diga tudo, diga mais ainda".

*

P.S.: eu achava que ele estava com seu uniforme militar. Ledo engano. Meu texto me desmente.

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895