A Constituição violada

A Constituição violada

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Presunção e inocência

 

      Faz tempo que não dou notícias de Palomas. As coisas andam agitadas por lá.

Como se sabe, é um lugar de muita atividade intelectual. Algumas das grandes controvérsias filosóficas tiveram origem na Academia Palomense de Ideias, onde peripatéticos – esféricos pensadores surpresos com tudo – refletem subindo e descendo coxilhas. Nesta semana, Guma, o oráculo que só prevê o previsível, sem margem para erros, e Candoca, o ingênuo que enxerga longe graças a um telescópio, debateram o incisivo LVII do artigo 5º da Constituição.

– É claro como osso velho: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, cita Guma.

– Vamos por parte como quem carneia uma ovelha – pede Candoca.

– Bela imagem. O que é trânsito em julgado? – pergunta Guma.

– Quando, feito a morte, não cabe mais recurso.

– Quanto a isso estamos de acordo, não é mesmo, bagual?

– Sim. Mas não tem a ver com o momento da prisão – rebate Candoca.

– Como não tem, tchê? Serve para que então essa lorota?

– Para definir uma nova condição do julgado.

– Deixa eu ver se eu entendi: a Constituição Federal informa que depois do trânsito em julgado, quando não tem mais recurso, feito a morte, o sujeito muda de nome, passando a ser chamado de culpado?

– Isso mesmo. Estás conseguindo ver as coisas como elas são.

– E para que serve isso, vivente?

– Para não chamar o culpado pelo nome errado, ora.

Guma parou para refletir. Tomou um mate. Sorveu a água quente com deleite. Franziu o cenho. Coçou o basto bigode esbranquiçado.

– Tchê, é complexo demais. Quer dizer que a Constituição se dá o trabalho de informar, apenas por informar, que o sujeito condenado, já não cabendo recurso, passa a ser chamado de culpado, assim como um touro castrado passa a ser chamado de boi, sem relação com a prisão?

– Claro, claríssimo, isso mesmo, nota dez em hermenêutica.

– Então o taura pode ir para a cadeia antes de ser culpado?

– Pode e deve. Assim se vai adiantando o serviço.

Guma ficou pasmo. Fechou um palheiro baseado na sua necessidade de pesar as coisas. Depois de algumas tragadas, voltou ao combate:

– O que eu faço, amigo, do artigo 283 do Código de Processo Penal, que diz com a clareza de um bom jorro de apojo: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

– Deleta.

– Como? Que troço é esse?

– Estou me atualizando em linguagem de computador. Apaga. Não passa de uma má interpretação de Constituição para favorecer a impunidade.

– Tchê, estou mais confuso que cusco em carreira. A Constituição diz uma coisa, mas devo entender outra. Acho que preciso reaprender a ler.

– Isso mesmo. Foste vítima do método Paulo Freire. Politiza tudo o que lê. A Constituição é tão clara que informa certas coisas só para não deixar dúvida: julgado e condenado deve ser chamado de culpado. Isso nada tem a ver com prender. Atrás das grades, o maula se chama preso.

­– Morrendo e aprendendo!

nvc

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