A corrupção como modo de vida

A corrupção como modo de vida

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O Brasil mudou.

Passou do comunismo ao neoliberalismo.

Dos pixulecos aos michulecos.

Das massas ativas às massas passivas.

Da falta de ética ao conselho de ética com Romero Jucá e Jader Barbalho.

Agora vai!

*

 

Indiretas já?

 

      Futebol já era. Deu. Novela também. O tempo, com seus debates acalorados – será que chove? Vem muito frio aí? –, sobre o verão passado e a chegada do inverno, não empolga mais. Agora só se discute política. Em táxi, uber, cabify e outros aplicativos, toda conversa começa assim:

– Cai ou não cai?

– O treinador?

– Não, o presidente.

– Do clube?

– Claro que não, né? O da República.

Todo brasileiro atualmente é um especialista em questões jurídicas e políticas. O cara não sabe a escalação do seu time – culpa dos treinadores modernos e dos seus rodízios –, mas cita sem vacilar os 11 ministros do STF: Carmen Lúcia, Gilmar, Toffoli, Marco Aurélio, Barroso, Lewandowski, Celso de Mello, Fux, Rosa Weber, Fachin e Moraes. Juro que encontrei um pipoqueiro que falava em ADIN e jurisprudência. Quando comentei isso com amigos, fui repreendido duramente por um deles:

– Preconceito teu. Preconceito de classe.

– Contra a classe dos pipoqueiros?

– Vai brincando, vai.

Em compensação encontrei um empresário do ramo das carnes, antigamente chamado de açougueiro, profissão de Joesley Batista, que cortou curto e grosso minhas especulações sobre constitucionalidade:

– Tudo isso é bobagem. O que interessa é o mercado. É o que conta.

Enfiei minha viola no saco. Só dá papo reto nacional. Já se fala em rádio 24 horas somente de política. Até a moda das séries americanas – novelas ao gosto das elites – perdeu espaço. A prova disso é a conversa que acompanhei numa esquina da capital gaúcha. Dois senhores engravatados duelaram durante alguns minutos na nobre esfera pública.

– Diretas já! – inflamou-se o mais alto.

– É golpe – retrucou o mais baixo e calvo.

– Golpe? Golpe é não deixar o povo escolher.

– Golpe é não respeitar a Constituição.

– Emendar a Constituição, não ferindo cláusula pétrea, jamais é golpe.

– Indiretas já!

– Não posso acreditar no que estou ouvindo. Não lutaste contra a ditadura? Não passaste mais da metade da tua vida adulta sem votar?

– Passei. Por isso é que digo: indiretas já!

A cada lance de retórica a massa urrava como se fosse gol.

– Indiretas já é medo do povo.

– Diretas já é medo do Moro. Medo do Moro botar Lula na cadeia.

– Ou do Temer parar atrás das grades?

Não pude acompanhar o fim do debate. Quando saí, estava pegando fogo. Não duvido que tenha terminado nas chamadas vias de fato. Antes de me retirar, ouvi um morador de rua que eu conheço soltar o vozeirão:

– Viva o povo brasileiro!

Foi aplaudido. Ele se intimidou um pouco. Mas completou:

– Baita livro do João Ubaldo.

*

Medo do povo

 

      O historiador José Murilo de Carvalho publicou um texto instigante na Folha de S. Paulo do último domingo. O título diz tudo: “Brasil não soube assimilar entrada do povo na vida política”. Os dados são acachapantes: a proclamação da República foi feita sem o povo, que, no dizer de um jornalista da época, assistiu “bestializado” aos acontecimentos. Durante a República Velha (1889-1930), o povo foi dispensado dos enfados eleitorais. No pleito que opôs Júlio Prestes e Getúlio Vargas, ponto de partida para a revolução que levou o gaúcho ao poder central, os eleitores não foram além de 5% da população.

A participação popular nesse tempo se dava por meio de revoltas, quebra-quebras e outras formas não institucionais de se fazer presente numa cena pública dominada por elites encasteladas em seus projetos de controle social pela força. O paradoxo está no fato de que os membros das forças repressoras são sempre recrutados nas massas reprimidas. Em 1945, quando foi eleito o general Eurico Gaspar Dutra, a participação do povo nas urnas subiu para 13%. Um recorde. Em 1960, quando Jânio
Quadros enganou o Brasil com sua vassourinha moralizadora, os eleitores chegaram a 18% da população. José Murilo de Carvalho fecha o ciclo: “Em 2014, os habilitados a votar já eram 71% dos brasileiros, cerca de 140 milhões de pessoas. Foi um tsunami de povo no sistema representativo”. O que fazer diante desse eleitor cheio de demandas?

O primeiro partido realmente popular foi criado sob a influência de Getúlio Vargas: o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Contra a sua influência – 22 deputados em 1946, 116 em 1962 – as siglas conservadoras da época (UDN e PSD, 80% da Câmara dos Deputados em 1945, 51% em 1962) manipularam, com ajuda dos Estados Unidos, em 1954 e 1964, o tamanho da corrupção e a ameaça comunista. Levaram Getúlio ao suicídio e deram um golpe. José Murilo de Carvalho lembra que afastar presidentes, por dentro ou por fora da Constituição, sempre foi o “feijão com arroz de nossa política”. Ainda somos os mesmos.

De 1945 para cá tivemos sete presidentes não eleitos pelo voto direto (oito com Temer?) e quatro que não completaram o mandato. O segundo partido popular foi o Partido dos Trabalhadores (PT). Não é preciso repetir o que o aflige. Carvalho resume: “Passados 87 anos de 1930, ainda estamos lutando com o problema de construir uma democracia inclusiva, capaz de sustentar governos representativos que possam combinar estabilidade institucional com implementação de políticas públicas voltadas para as necessidades da maioria dos representados”.

O Brasil, porém, é um país original que sonha em eliminar a violência exclusivamente pela repressão sem precisar resolver o problema crônico da desigualdade. Talvez o próximo presidente eleito pelo voto indireto – Rodrigo Maia? Tasso Jereissati? Nelson Jobim? – tenha lido o artigo de José Murilo de Carvalho e pense no assunto. Não seria melhor emendar a Constituição e convocar o povo para escolher? O elitismo chama de populismo ou golpe essa preferência pela plebe rude.

 

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