A corrupção em três tempos

A corrupção em três tempos

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No seu lugar

 

      Solta o refrão: tudo está no seu lugar. De novo: tudo está no seu lugar. A prisão preventiva volta a ser de curta duração e aplicável em circunstâncias excepcionais. O homem da mala de R$ 500 mil, o protegido de Michel Temer, o agora famoso Rocha Loures, já voltou para casa e pode passar o dia onde bem entender. Andreia Neves também voltou para o lar, mas contraditoriamente não poderá dar uma volta diária na Savassi. Tudo está no seu lugar. O Supremo Tribunal Federal não tem mais poder de afastar parlamentares. O ministro Marco Aurélio Mello devolveu o mandato de Aécio Neves alegando que se deve respeitar o voto do povo. Por que então ele queria, poucos meses atrás, desrespeitar as urnas e deletar o mandato de Renan Calheiros?

Teori Zavascky afastou Eduardo Cunha da presidência da Câmara dos Deputados e do mandato. O senador Delcídio Amaral foi preso num flagrante duvidoso. Qual a diferença entre o que aconteceu com Delcídio e o que envolve o primo de Aécio recebendo malas de dinheiro? Era coisa dele? O senador não sabia de nada? As gravações mostram que ele indicou o primo Fred para a missão tanto quanto Temer apontou Loures como seu emissário junto a Joesley Batista. Tudo está no seu lugar. O acusado só vai para cadeia depois de julgado em segunda instância. Por que o ex-tesoureiro petista Vaccari, absolvido em segunda instância, continua preso? Como dizia o outro, eis o busílis. Quem era o outro? Vamos manter o foco. O outro é o outro. Ou não?

O que aprendemos com tudo isso? Que existe a justiça de Curitiba e a justiça de Brasília, a justiça de Sergio Moro e a justiça de outros lugares. Moro mantém preso. Brasília solta. Aprendemos também que quando a cana chegou na turma dos camarotes foi preciso “estancar a sangria”. Uma coisa é prender ou cassar novo rico petista ou algum peemedebista mais obsceno nos seus crimes. Outra é abater em pleno voo um tucano quatrocentão. Tudo está no seu lugar. Cada juiz tem seu entendimento. Vamos combinar: direito é ideologia e conveniência. Vale o que o juiz achar mais adequado para o momento. Por coincidência o mais adequado é sempre o que interessa para a aristocracia secular. Acontecem tropeços. Rapidamente tudo volta ao seu lugar. Eu era garantista. Agora, entendi o “realismo jurídico”, corrente norte-americana que ensina o seguinte: moral e regras jurídicas escritas são ficções, cartas de boas intenções. O que vale é a decisão do juiz.

A diferença é que os adeptos do realismo jurídico acham isso bom e eu vejo nisso apenas falta de critérios, abuso de poder, dominação e hipocrisia. Há sempre uma carta na manga a ser sacada para ludibriar o “simplismo” do povo. Sérgio Moro é um ingênuo que precisa ler os realistas do começo do século XX. Meteu 14 anos em Vaccari. Dois dos três revisores do TRF-4 não viram provas e reduziram a zero. Uau! Moro disse que se tratava de uma melancia. A segunda instância não se convenceu. De 14 anos para zero. Um abismo. Estou defendendo petista ladrão? Estou defendendo Moro. Agora entendo porque ele jamais colocou um tucano na cadeia. Seria perda de tempo. Tudo está no seu lugar.

*

A prova da exceção

 

      Um leitor sagaz me faz uma advertência: meu sistema tem um furo. Admito. Ele me pergunta: se a justiça só pega novo rico petista ou peemedebista obsceno, por que Marcelo Odebrecht continua preso? Na mosca. Em “O nome da rosa”, grande romance de Umberto Eco, temos uma conversa genial entre o mestre investigador Guilherme e o discípulo Adso, que narra a história na sua velhice riquíssima de lembranças:

“– Mas então – ousei comentar – estás ainda longe da solução...

– Estou pertíssimo – disse Guilherme –, mas não sei de qual.

– Então não tendes uma única resposta para vossas perguntas?

– Adso, se eu tivesse, ensinaria teologia em Paris.

– Em Paris eles têm sempre a resposta verdadeira?

– Nunca – disse Guilherme –, mas são muito seguros de seus erros.

– E vós – disse eu com impertinência infantil – nunca cometeis erros?

– Frequentemente – respondeu – mas ao invés de conceber um único erro imagino muitos, assim não me torno escravo de nenhum.” É isso aí.

A situação de Marcelo de Odebrecht é um ponto de sombra na solução do enigma. Quase todos aqueles executivos da Petrobras, pobretões perto dele, já estão nas suas mansões cuidando do jardim ou jogando golfe com uma única restrição, por conta deles: sem usar bermuda para não mostrar a tornozeleira eletrônica. Será que eles as usam todo o tempo. Não podem alugar uma perna que se mantenha ao lado deles com o adorno passando informações corretas para a central? A Polícia Federal disse que tinha chip nas malas de dinheiro e que as cédulas eram numeradas. Era blefe. Só uma mala fora chipada. O detetive filósofo de Eco, que trabalha com lógica, quebraria a cara neste Brasil com muitas lógicas. Como se explica o caso de Marcelo?

Joesley Batista nem chegou perto de uma cela. Ele tomou cuidado de ir se confessar em Brasília. Foi direto à fonte. Marcelo Odebrecht continua preso. Está no contrato que fez. Deveria demitir seu caríssimo escritório de advocacia e contratar a turma de Joesley. Pensando bem, o detetive medieval de Umberto Eco, seria útil aqui. A teoria do domínio do fato trabalha como certa concepção medieval. Pelo uso da lógica se chega à existência do principal operador do sistema, do ser primeiro do esquema, do primeiro motor da ação coletiva, do motor imóvel, o que move todos os outros e sem qual nada poderia se mover. Se todo efeito tem uma causa então é preciso que exista a causa primeira. Ou primeiro causador, aquele que não precisa ser causado por ninguém. Era uma boa hipótese. Fazia sentido. Só faltava a prova.

Ora, o que é a prova? O que aqueles com poder de decisão dizem que é. A prova não é universal nem intemporal. Chega de digressão. Por que Marcelo Odebrecht continua preso? Minha hipótese hiperlógica (tão lógica que chega a ser mais lógica do que a lógica aristotélica): Marcelo permanece na cadeia para provar que toda regra tem exceção. Salvo se for por causa daquele ar de tecnocrata arrogante. Joesley fala papo reto sobre coisas curvas. Marcelo entorta linha reta. Só pode ser isso. O que mais poderia ser? A questão me parece lógica. Além disso, também continua preso Leo Pinheiro da OAS. Essas teses.

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Unidos da Pureza

 

      Enfim, juntos: Lula, Dilma, Temer e Aécio. Todos contra a Polícia Federal, o Ministério Público, a OAB e a Justiça. Manifesto contra o Estado de Exceção. Vai dar samba e nova escola, a Unidos da Pureza. Nada aconteceu. É tudo culpa da vontade de aparecer de procuradores ideologizados. Aquelas malas de dinheiro do primo Fred eram só um empréstimo privado do Joesley Batista ao senador Aécio. A delação do dono da JBS envolvendo a família Neves foi só um truque para obter vantagens e obter o perdão judicial. Não parece tudo claro?

Os advogados criminalistas estão indignados. Antes, eles ganhavam todas. Era habeas-corpus até de madrugada. Cliente vip não passava perto de cadeia. Alguns ainda não passam. Especialmente os de plumagem vistosa. Chega a dar pena. Todos perseguidos, injustiçados, acusados por bandidos da pior espécie, enlameados por oportunistas e alvejados por delações sem a apresentação de provas. Políticos reclamam da desqualificação da política pela mídia. Mas trabalham diariamente para confirmar o que deles se diz de pior. Não agem. Atuam. Não argumentam. Recitam. Não legislam. Representam. Jogam.

Entre os mais destacados atores do momento estão três gaúchos: Carlos Marun, Darcísio Perondi e Alceu Moreira. Falando nisso, onde anda o DEM? Sumiu. Antes tão eloquente no discurso contra a corrupção, o DEM saiu de cena. Marun (PMDB-MS) destacou-se como ator na defesa da inocência de Eduardo Cunha. Merecia um Oscar pelo difícil papel. Perondi e Moreira usaram e abusaram da retórica para descrever a “roubalheira” do governo Dilma. Eram leões. Hoje miam quanto à corrupção e urram leoninamente na defesa da inocência de Temer. Que desempenho! Eu daria Oscar de ator coadjuvante aos três. O prêmio principal iria para o próprio Michel Temer. Fantástico. Chego a pensar que ele crê piamente no que diz. E o jogo de mãos. Elas não param.

Eu me pergunto: as mãos de Temer confirmam ou negam o que ele diz? Fico vidrado naqueles dedos de mágico de circo pobre. Eu não jogaria cartas com Temer. Ele me hipnotizaria e me tomaria a carteira. E a expressão? O que comunica aquele ar vampiresco? Não quero ser injusto na premiação. O Oscar precisa ser dividido entre Temer, Aécio e Lula. São três gigantes. Cada qual com seu estilo. Aécio foi ao apogeu da grande arte ao dizer que sempre confiou na justiça brasileira. Temer quebrou tudo ao declarar que nada o destruirá. Lula perdeu pontos. Não fez declaração tão retumbante. Precisa se redimir com uma daquelas frases inimitáveis: nunca na história deste país houve um presidente tão honesto, transparente e com a vida devassada.

Getúlio Vargas dizia não ter amigos de quem não pudesse se separar nem inimigos de quem não pudesse se aproximar. Salvo Carlos Lacerda. Deve ser esse espírito ampliado que aproxima advogados de Lula, Dilma, Temer e Aécio para uma cruzada contra os abusos do poder judiciário. Todos contra Sérgio Moro. O lema dessa união de lesados poderá ser o concebido pelo criativo Romero Jucá, que vestia verde-amarelo e fazia coraçãozinho contra a corrupção: “estancar a sangria”.

 

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