A estabilidade francesa

A estabilidade francesa

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Venho a França todos os anos.

Morei quase seis anos, ao todo, em Paris.

A minha relação com a França começou em 1991.

De lá para cá, muita mudança e quase nenhuma.

É verdade que PPDA, antigo William Bonner francês, não apresenta mais o jornal de 20 horas.

Mas Claire Chazal, apresentadora do 20 horas no final de semana, continua firme.

Parece a mesma. Há mais de 20 anos.

As mulheres, mais agudas nessas análises, cutucam:

– Ela envelheceu.

Jean-Pierre Pernaut, apresentador do jornal de 13  horas da TF1 (a Globo francesa), também continua no posto.

A gente liga a televisão e se sente tranquilo, em casa, num ambiente familiar.

Entrei na banca de jornais do rue de Vaugirard. O dono, que me vendeu revistas e jornais durante quase dois mil dias, levantou a cabeça com a lentidão de sempre e, como se eu não tivesse ido embora, balbuciou preguiçosamente.

– Bom dia, Monsieur Machado.

A França é estável até na instabilidade. As polêmicas do momento envolvem, por exemplo, a flexibilização das 35 horas semanais de trabalho. Todo ano é a mesma coisa. Algum economista ou algum empresário tenta. Gera uma revolta sindical. Tudo fica na mesma. Tocar nas 35 horas é visto pelos sindicatos como uma ideia "extremista", "retrógrada" e "medieval".

Outra polêmica, ainda mais violenta, diz respeito à sugestão de dois economista de congelar os salários por três anos.

Não existe França sem polêmica – social, política  e literária –, sem estabilidade e sem manifestações.

O outono, normalmente, é a temporada das greves.

Os médicos ameaçam parar. Eles são contra um projeto do governo socialista. O ministério da Saúde quer que os pacientes não precisem mais desembolsar uma quantia por consulta – em torno de 25 euros. Essa soma é quase totalmente reembolsada (o paciente paga 1 euro). O projeto prevê que o pagamento seja feito diretamente pela Previdência eliminando a burocracia e liberando cada pessoa de meter a mão no bolso. Os médicos estão furiosos. Asseguram que isso desvaloriza o trabalho deles, pois daria a entender que a saúde é gratuita, estimulando o crescimento das consultas desnecessárias.

Adoecer, para um estrangeiro, na França é uma aventura. Se o seguro médico expirar, o rolo é certo.

Um hospital público queria dois mil euros por uma noite de hospitalização para tratar de uma crise de hérnia de disco.

Velha França, sempre socialista, sempre hipercapitalista.

Aqui, não é preciso defender a preservação das tradições.

A França é a tradição.

Os jornalistas praticam o bateu-levou.

Um leitor enviou um comentário a um jornalista: "Não estou gostando".

A resposta foi imediata: "É só não ler. Não se sacrifique".

Velha França de guerra. Ninguém leva desaforo para casa.

Outros combates do momento: contra o racismo e contra a homofobia.

A regra do jogo é: complacência zero com manifestações racistas e homofóbicas.

Não tem essa de "foi só uma maneira de dizer" ou "foi no calor da discussão".

Falou, pagou.

Até 2015.

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