A FEE não pode fechar

A FEE não pode fechar

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Pós-verdade, confiança nas informações e planejamento

Carlos Águedo Paiva

A era da pós-verdade não é apenas a era do facebook, onde tudo se posta e quase nada se comprova. A era da pós-verdade é a era das falsas certezas dos super-especialistas, é a era do não-diálogo, a verdadeira era dos extremos.

É fato que a força da pós-verdade é alavancada pelo despreparo crítico-científico do usuário das redes sociais. Mas o verdadeiro sustentáculo da "nova-era" não é o leigo. Mas o super-especialista. Em Economia, por exemplo, qualquer ideológo leigo poderá encontrar uma meia dúzia de "especialistas" de inflexão keynesiana, hayeckiana, ricardiana, marxista, novo-clássica, clássica, neo-keynesiana, monetarista, schumpeteriana ou behaviorista que - com frases descontextualizadas (ou não!!!!) - provará o que ele bem entender. Se o cara ainda souber apelar para novos modelos estatísticos e de jogos (dilemáticos ou não) ele está feito: prova qualquer coisa que quiser: a tese, a antítese, a síntese e o oposto das três anteriores.

NUM MUNDO DESTES, ONDE PODEMOS EMBASAR A CONFIANÇA NECESSÁRIA AO DEBATE ESCLARECIDO E DEMOCRÁTICO?

No Rio Grande do Sul, a instituição que simboliza, simultaneamente, a independência e a seriedade teórica e ideológica no campo da produção de dados e indicadores e da análise de estatísticas econômicas tem um nome:  FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA.

Assim que eu entrei na FEE eu fui brindado com uma grande homenagem. Pediram-me que eu escrevesse um texto sobre expectativas de inflação para o ano de 2003, primeiro ano do mandato de Lula. A polêmica rolava solta. Lula iria adotar políticas fiscais e monetárias restrititivas? E se ele adotasse políticas conservadoras, ele estaria correto (era uma imposição da conjuntura?) ou seria uma traição àqueles que ansiavam por nova política econômica?

Escrevi com empenho e convicção. E achei que tinha ficado um texto convincente e bem escrito. Fiquei orgulhoso do meu primeiro trabalho na casa que, para mim, estava pronto e acabado. Bola prá frente. E me pus a pensar em outra coisa para fazer.

Qual não foi a minha surpresa quando, dois dias depois de entregar, eu recebi a visita de três nobres colegas: o diretor técnico, o supervisor do Centro de Estatísticas e o Supervisor do Centro de Emprego e Desemprego. Eles tinham vindo manifestar várias dúvidas e algumas críticas sobre minhas hipóteses. .....

No início, desentendi!

Então eles tinham que concordar com um texto assinado exclusivamente por mim?

Por quê?

Logo fui captando: não precisava ser consenso. Mas tinha que ser compreendido por todos. Os argumentos tinham que ser racionais. E não podia haver derivações por convicção particular. Na FEE, só falam os fundamentos teóricos e os dados confiáveis. E só falam enquanto conclusões lógicas. As convicções particulares não têm porque se expressar com o selo FEE. Elas transbordam do que é rigoroso. Não cabem em nossos textos. Ponto.

Eu aprendi muito ao longo de minha vida profissional na FEE.

Antes de vir para cá, não fazia nenhuma ideia da complexidade da produção de um índice de desenvolvimento socioeconômio. Aqui - graças ao Rafael Bernardini Santos - aprendi que indicadores com elevada variância retiram expressão dos demais e distorcem índices que se querem "múltiplos e sofisticados". E aprendi com outros os problemas derivados do caráter "artificial" das unidades territoriais (MAUP). Aprendi como são feitos indicadores confiáveis e como é fácil manipular a opinião pública com a produção de indicadores que se pretendem científicos, mas são rigorosamente falseadores da realidade.

Mas o mais importante de tudo é que eu não aprendi sozinho nada disso. Uns aprendem com os outros todo o tempo. E vice -versa do contrário. Por que é uma equipe magnífica. Uma equipe selecionada num dos testes mais difíceis que eu já prestei na minha vida (quase reprovei em estatística, mas cheguei ao mínimo de 50% de acerto; e acabei em primeiro lugar, com as boas notas nas demais provas!!!). Em cada elo da cadeia do conhecimento, tu tens um cara altamente qualificado e que domina o seu produto e o seu tema. E todos fiscalizam as boas práticas de todos na produção da base de dados, de indicadores, de índices e de análises.

Tenho colegas de todas as tendências políticas: liberais e socialistas, keynesianos e libertarianos, neoclássicos e heterodoxos. Mas não tenho nenhum colega que - para tentar convencer o outro de alguma proposta de publicação - possa simplesmente apelar para a autoridade política. Nem o Presidente da FEE tem poder para tanto. Nem o Diretor Técnico. Chefe algum sequer tenta fazer isto. Os textos, os indicadores, os índices, são produzidos por convicção teórica e de acordo com as melhores e mais rigorosas práticas estatísticas e teóricas do mundo.
ONDE MAIS SE TEM ISSO NO BRASIL HOJE?

Infelizmente, tal como temos na FEE, em pouquíssimas partes do Brasil.

E querem acabar com este tesouro.

O RS vive uma crise fiscal estrutural. Ele não tem como resolver seu problema fiscal sem uma ampla mobilização coletiva dos gaúchos envolvendo:

1) o governo federal a reconhecer a particularidade de nossa dívida e da nossa realidade fiscal se abrindo a uma negociação diferenciada (o RS é o único Estado que introduz a aposentadoria universal integral para o funcionalismo público no século XIX);

2) uma auditoria franca e aberta da dívida e dos benefícios fiscais às empresas e a relação custo-benefício desta estratégia;

3) um planejamento assentado sobre projeções científicas de crescimento da população e evolução da demanda e capacidade de oferta pública de educação, saúde e segurança.

A única forma de alcançarmos uma discussão serena sobre cada um destes três pontos é com uma base de dados e indicadores absolutamente confiáveis.

No mundo da "múltipla (des)informação", no mundo da pós-verdade internáutica, nenhuma base de dados é confiável A NÃO SER QUE ELA TENHA UM SELO DE QUALIDADE INSTITUCIONAL INQUESTIONÁVEL.

O SELO "FEE" É O SELO DA CONFIANÇA ESTATÍSTICA E INFORMACIONAL NO RIO GRANDE DO SUL.

QUEREM ACABAR COM ELE.

Nós praticamente já ganhamos a briga pela nossa estabilidade. (Ainda não dá para ter certeza, pois nosso judiciário é "complexo e sestroso".) Mas o governo Sartori insiste em defender a extinção da FEE MESMO QUE NÃO POSSA DEMITIR UM ÚNICO SERVIDOR.
Parece que é preciso explicar para este governo o básico.

Que:

1) 200 pessoas trabalhando sozinhas e 200 trabalhando em equipe atingem produto muito diferente, pois a divisão do trabalho alavanca a produtividade (Adam Smith, Riqueza das Nações, Cap. 1, 1776)

2) uma instituição não é só divisão do trabalho mas um sistema de crítica e aprendizado. Todo o sistema comporta mais conhecimento que suas partes. É isto que torna as pessoas substituíveis. Destruir uma instituição é destruir conhecimento;

3) A FEE produz algumas informações que o sistema de Planejamento Público no RS AINDA NÃO está aparelhado para receber. Mas se um elo do sistema é capaz de produzir mais do que a cadeia pode absorver, daí não se deriva que devamos transformar o "equipamento super-poderoso" (o robô, o super-computador) em "sucata vendida ao varejo".

Se há limões demais até para fazer limonada, não se corta o limoeiro. Da exportação de limão, à reconversão para a produção de laranja, bergamota, maracujá, passando por cursos para ensinar o governo a usa "limão-Matriz-de-Insumo-Produto" há um enorme leque de alternativas melhores do que destruir nossa excelência.Acho que chegamos a um ponto sem volta. Ou a assessoria do Sartori reconhece logo esta obviedade, ou vai perder os últimos meses deste triste governo tentando lutar contra

a razão,

o bom-senso,

a inteligência gaúcha,

a torcida,

a opinião pública,

o eleitor potencial,

o bom-senso.

Autocrítica é sensato.

Desespero é coisa de perdedor.
Dá dó de "líderes" que insistem em fazer de conta que governar é destruir e, quando impedidos em sua própria loucura, brincam de vociferar contra aqueles que impediram o gesto insano e vergonhoso. Chega. Se os senhores não sabem o que fazer, por favor, pelo menos não nos atrapalhem Parem de atrapalhar o trabalho alheio.

 

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