A força dos fatos

A força dos fatos

Livro desmonta mitos

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O sueco Hans Rosling foi um dos maiores palestrantes do mundo. Morreu em 2017. Eu nunca tinha ouvido falar dele até receber o seu livro “Factfulness, o hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos – informações como uma forma de terapia” (Record). Médico, Rosling palestrou por toda parte, especialmente para os poderosos. Era figurinha carimbada em Davos. Na sua plateia estiveram presidentes dos Estados Unidos e das grandes nações europeias. Ele terminava muitas das suas falas em cima de mesa engolindo uma espada. Amava circos.

Responda sem ir ao Google, caro leitor: “Em todos os países de baixa renda do mundo, hoje, quantas meninas terminam o ensino fundamental: 20%, 40%, 60%?” Outra pergunta do show de Rosling: “Em média, no mundo todo, homens de 30 anos passaram dez anos na escola. Quantos anos passaram na escola mulheres da mesma idade: nove anos, seis anos, três anos?” Em cada palestra, mesmo para especialistas, a maioria errou. As respostas certas são 60% e nove anos.

A mensagem de Rosling é simples: o mundo é melhor hoje do que ontem. Por que mesmo empresários, economistas e políticos importantes erraram e erram nas respostas? Segundo Rosling, pela força de uma mentalidade negativista.

Ele levantou o ranking dos países mais pessimistas. Franceses estão quase sempre entre os que mais acreditam numa piora de tudo. Vejamos outra questão da panóplia do autor: “Qual porcentagem de crianças de 1 ano no mundo hoje já foram vacinadas contra alguma doença: 20%, 50%, 80%?” A resposta é 80%. Espetaculoso, Rosling concebeu uma imagem forte para destacar o enorme engano de todo mundo: chimpanzés acertam 33% das respostas às 12 questões propostas. Numa pesquisa feita em 2017, “com quase 12 mil pessoas em catorze países”, a performance foi medíocre: “Em média, elas acertaram apenas duas respostas”. Eu acertei todas. Sou um gênio? Não. Li a orelha do livro e compreendi o método de cara: colocar o melhor no lugar do pior.

Rosling quebrou expectativas: “Talvez você pense que gente com mais educação se saia melhor? Ou pessoas que têm maior interesse pelos temas. Eu certamente já pensei isso, mas estava enganado. Testei plateias do mundo inteiro e de todas as classes: estudantes de medicina, professores, acadêmicos, cientistas eminentes, banqueiros, executivos de multinacionais, jornalistas, ativistas e até mesmo autoridades públicas graduadas. São pessoas altamente educadas que se interessam pelo mundo. Mas a maior parte delas – uma impressionante maioria – errou a maior parte das respostas”. Todos desinformados.

Melhor, mas ruim – Pode-se objetar que Hans Rosling manipula palavras. Na pergunta sobre vacinas, fala em “alguma doença”, não todas. A sua réplica é direta: o mundo pode estar ruim, mas melhor. Ele se opõe à divisão entre “nós” (ricos) e “eles” (pobres), sul e norte, desenvolvidos e em desenvolvimento. Prefere falar em quatro níveis de renda por dia: até 2 dólares (1 bilhão de pessoas), até 8 dólares (3 bilhões), até 32 dólares (2 bilhões) e mais de 32 dólares (1 bilhão). Aí o leitor se choca: esse um bilhão que vive com dois dólares por dia e esse um bilhão que vive com mais de 32 dólares não são nós e eles?

Para Rosling, não. Trata-se de um neoliberal tentando encobrir a desigualdade? Não. É um socialdemocrata, que avisa: “O mundo não pode ser compreendido sem números, mas o mundo não pode ser compreendido apenas com números”. O PIB não diz tudo sobre a vida real num país. O livre mercado, alerta, não resolve tudo sozinho. O Estado tampouco. A perspectiva única é sempre simplista. “Adoro especialistas, mas eles têm suas limitações”, ironiza. Hans Rosling acreditava que as “rochas se movem” e que mudanças lentas são melhores do que nenhuma mudança. Viajante incansável, tendo vivido na África, na América, na Europa e na Ásia, adorava desconstruir narrativas. A África parou no tempo?

Mesmo reconhecendo o atraso africano em relação a outros, destacava dados assim: “Cinco grandes nações africanas – Tunísia, Argélia, Marrocos, Líbia e Egito – têm expectativas de vida acima da média mundial de 72 anos. Elas estão onde a Suécia estava em 1970”. Não é a verdadeira África? O rei das estatísticas não se rendia: “Todos os cinquenta países do sul do Saara reduziram sua mortalidade infantil mais rápido do que a Suécia. Como isso não pode ser considerado um progresso inacreditável?” Ainda ruim, mas melhor.

Parte do problema dessa visão distorcida seria culpa da mídia: “É praticamente dever profissional de um jornalista fazer qualquer evento, fato ou número soar mais importante do que é”. E, como se sabe, jornalistas não se interessam por aviões que pousam normalmente. Para corrigir o olhar, Rosling receitava fatos contra dez “instintos” ou tendências: instinto de separação (nós e eles), negatividade, linha reta (sempre em direção ao pior), medo, tamanho, generalização, destino, perspectiva única, culpar e urgência. Uma cura pelo real.


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