A mídia e o passado que condena

A mídia e o passado que condena

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Em 29 de janeiro de 1884, A Província de São Paulo (atual O Estado de S. Paulo) faturava com um longo “edital da praça”, uma das suas grandes fontes de receita, encomendado pelo dr. Lupercínio da Rocha Lima, juiz de órfãos de São José dos Campos “na forma da lei”. Anunciava-se um leilão com grandes oportunidades de negócios: “sessenta cabeças de porcos soltos à razão de 8$33 réis cada uma, que soma 500$000”, “um cavalo pombo para sela, avaliado em 100$000”, novilhas, mulas, casas, terras, tábuas.

E mais: “Os escravos abaixo mencionados, em cujo ponto deverão comparecer os proponentes à sala da câmara municipal, sendo: Martim, cor preta, de 56 anos de idade, casado com a escrava Isabel, africano, de trabalho pesado, pedreiro, avaliado em 1:500$000. Isabel, cor preta, de 36 anos de idade, casada com o escravo Martim, crioula, de trabalho pesado, cozinheira (com três filhas ingênuas), avaliada em 800$000”.

E ainda mais: “Casemiro, cor preta, de 15 anos de idade, solteiro, crioulo, filho de Isabel, pra [sic trabalho leve, para serviço doméstico, avaliado em 1:500$000. Joaquim, cor parda, de 41 anos de idade, casado com a escrava Maria, crioulo, para serviço pesado, avaliado em 1:200$000. Maria, cor preta, de 56 anos de idade, casada com o escravo Joaquim, africana, para trabalho regular, lavoura, avaliada em 400$000”.

E mais: “Feliciano, cor preta, de 41 anos idade [sic, solteiro, crioulo, para serviço pesado, lavoura, avaliado em 1:200$000. Bonifácio, cor preta, de 36 anos de idade, solteiro, crioulo, para serviço pesado, lavoura, avaliado em 1:400$000. Adão, cor parda, de 31 anos de idade, solteiro, crioulo, para serviço pesado, lavoura, avaliado em 1:400$000. Caetana, cor preta, de 26 anos de idade, solteira, crioula, para serviço pesado e doméstico (com uma filha ingênua), avaliada em 7000$000”.

A abolição da escravatura chegaria em quatro anos. A campanha abolicionista já era grande. O jornal, porém, tinha interesses e responsabilidades. Seria enorme a perda de faturamento sem os editais de leilão de negros. No site com o acervo do diário paulistano pode-se ler agora mesmo: “O jornal O Estado de S. Paulo nasceu com o nome de A Província de São Paulo. Seus fundadores foram um grupo de republicanos, liderados por Manoel Ferraz de Campos Salles e Américo Brasiliense, que decidiram criar um diário de notícias para combater a monarquia e a escravidão. É estabelecida uma linha mestra, que caracteriza o jornal até hoje: ‘fazer da sua independência o apanágio de sua força’”. Que lindo!

Republicano e abolicionista, mas sustentado com editais de venda de escravos. Deve ter sido a estreia no seu mantra: pragmatismo sem ideologia. Ou o dinheiro acima de tudo. A imprensa mudou? Agora que ela é chamada de mídia tem outro comportamento? Tornou-se coerente? O Estadão custou a pegar o trem da abolição. Não gosta de falar em dívida histórica com o passado e com os escravos e seus descendentes. Talvez para não ter más lembranças. Dá lições de moral para o futuro e para estas eleições.

 

 

 

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