A vida não é feita só de prosa

A vida não é feita só de prosa

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Mulher

 

Chamas a noite de vadia

Pelo desejo que sentes

de te perder dentro dela.

 

Esse medo que desde menina

É o que mais te fascina

No enigma da solidão.

 

Querias crescer antes do tempo

Para ganhar as ruas e estradas

E apagar sozinha as estrelas

No outro lado da imensidão.

 

Fugias na ponta dos saltos

dos lindos sapatos azuis

para iluminar as vitrines

com teus olhos de cobalto.

 

Desde muito cedo sabias

Que nada te impediria

De navegar até o alto

Da cidade incendiada.

 

Chamas a noite de vazia

Esquecendo que mentes

Por medo de encontrar

Nela o que perdeste

Na passagem dos anos.

 

Perdeste dias, homens,

Amores, algumas flores,

Ônibus, bonecas e donos.

 

Chamas a noite de cadela

Porque não queres que ela

Te surpreenda sem roupa

À espera do último amante.

 

Mas sabes que viveste

E que nada pode lavar

Essa marca da tua boca.

 

Que importa se te chamam

De faminta ou de louca,

De loba ou de mulher?

 

Só importa que te reclamam

E lembram de tuas promessas.

 

Foste no tempo caravela,

Tigresa, pintura e igreja,

Mar interior e ravina.

 

Entre as tuas pernas,

Nesse despenhadeiro,

Naufragaram os bravos.

 

Tantos acenderam velas

No seio do teu altar

Que não se tem contas

De quantos escravos

te pediram correntes.

 

Cheiravas a jasmim,

A canela, a cravos.

Nesse tempo, sabias

De ti como de mim.

 

Depois, enfim, a noite,

Serena, se encarregou

De desiludir o amanhecer.

 


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