Adeus à realidade

Adeus à realidade

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Jean Baudrillard sabia das coisas.

 

Os hilotas e as elites

 

Vivemos numa realidade política perfeitamente dissociada.

De um lado, a classe política, microssociedade paralela, secretamente em desemprego técnico, evoluindo impunemente e fadada ao que parece à tarefa exclusiva de reproduzir-se, numa confusão endogâmica de todas as tendências - essa aliança incestuosa da direita e da esquerda não deixando de provocar patologia e degenerescência características da consanguinidade. Do outro lado, a sociedade « real » cada vez mais desconectada da esfera política. Ambas, afastando-se uma da outra à velocidade V maiúsculo, parecem mais ou menos destinadas a perecer ou a desagregar-se cada uma em seu canto - sob perfusão graças ao cordão umbilical da mídia e das sondagens. A virtualidade, no sentido pelo qual a vontade política só opera através das telas mentais das televisões e da intermediação das sondagens, transformou a função e a representação políticas em vestígios quase inúteis. Nenhuma dialética, mesmo conflitual, mantém mais os dois polos em interação.

A mesma situação vale na economia. De um lado, farrapos de produção e de economia real; de outro, gigantescas circulações de capitais virtuais cujas peripécias - crash da Bolsa e outras derrocadas financeiras - não implicam mais sequer o desabamento das economias reais, de tal modo elas estão dissociadas uma da outra. O mesmo ocorre com a esfera política: os escândalos, a corrupção, a degradação geral não têm consequências decisivas numa sociedade dissociada, onde a responsabilidade (a possibilidade para as duas partes de responderem-se) não faz mais parte do jogo.

Essa situação paradoxal é de qualquer maneira benéfica: protege a sociedade civil (o que resta dela) das vicissitudes da esfera política, como  protege a economia (o que resta dela) dos  riscos da Bolsa e da finança internacional. A imunidade de uma cria a imunidade recíproca da outra - indiferença especular. Melhor: a sociedade real desinteressa-se da classe política, sem deixar de desfrutar o espetáculo que esta proporciona. A mídia serve enfim para alguma coisa e a « sociedade do espetáculo » tira todo o seu sentido dessa feroz ironia: as massas concedendo-se o espetáculo dos disfuncionamentos da representação através dos riscos da corrupção da classe política. A esta nada mais resta a não ser se autossacrificar para assegurar o espetáculo necessário ao prazer do povo. Pois se o princípio do poder implicava outrora um risco de morte, o grau zero do poder não implica mais do que o auto da fé artificial. Ainda uma vez, graças sejam rendidas aos políticos, que nos livram da obrigação enfadonha de administrar o lugar vazio que se tornou o poder - como cabe a outros administrar o dinheiro, os negócios, o lazer, a moral, a cultura. Tarefas supérfluas devolvidas, felizmente, aos charlatões, aos predadores, aos especuladores, sem contar os filósofos com lábios de cera.

Dessa leucemia política, o episódio socialista terá sido a mais bela ilustração. A vontade política tendo se tornado estéril e a pole position do poder, virtualmente vacante (desde 1968 talvez?), a esquerda precipitou-se para tomá-lo e imediatamente desintegrou-se no vazio. (Da mesma maneira a pole position masculina estando virtualmente desocupada - o privilégio do homem tendo desaparecido -, o feminismo tem pressa em ocupá-la e, claro, cai na armadilha que é o próprio vazio do poder.) Mitterrand, de resto, deve ser felicitado por ter cumprido boa parte do trabalho: ter garantido, graças a uma espécie de varredura póstuma, a profunda corrupção do sistema político, ter mistificado e varrido toda a esquerda divina!

O desabamento da esquerda, bem além do seu declínio real - com todos os sonhos de imaginação no poder -, não significa que ela seja inapta a este ou que tenha cometido erros fatais (só acumulou, felizmente, erros banais), mas que, apesar de sua adiantada descalcificação histórica, não foi capaz de assumir essa indiferença e essa inércia do corpo social. Num sentido, é quase uma honra cair por não ter sabido, mesmo tendo renunciado ao ideal, desembaraçar-se definitivamente deste. A direita identifica-se espontaneamente com o fantasma inerte do corpo social e com o profundo ressentimento nutrido por este em relação ao político. Nesse sentido, é menos política que transpolítica, isto é, alinhada com base no menor denominador comum de uma sociedade politicamente indiferente. Colhe, portanto, os frutos dessa indiferença. Mas como representa a própria perspectiva política, as defecções da esquerda e da direita conjugam-se em harmonia.

Quem falou de imaginação no poder? Nunca houve imaginação no poder.

Quanto ao tipo de acontecimento que produz a sociedade dissociada, a Europa é um bom exemplo. Trata-se do tipo característico de acontecimento contemporâneo, de acontecimento in vácuo, de fantasmagoria in vácuo. A Europa não aconteceu na mente, nem nos sonhos, nem na inspiração natural de ninguém (ao menos conforme o projeto atual), mas somente no espaço, afetado pelo sonambulismo, da vontade política, dos dossiês, dos discursos, dos programas e dos cálculos - e na síntese artificial da opinião que é o sufrágio universal severamente orientado e controlado de acordo com o idealismo astucioso dos políticos e dos especialistas. Tal qual se esboça, a Europa é de qualquer modo um modelo de simulação projetado em plena desertificação social - realidade virtual obrigatória, a vestir como um conjunto digital (já nos tinham feito engolir a guerra do Golfo como uma guerra in vácuo, a vestir também como realidade virtual).

Não escaparemos disso tanto quanto não o faremos em relação à Internet, à moeda única ou às redes de alimentos congelados. Essas coisas acontecem de qualquer maneira, seguem seus caminhos a despeito de todo sentimento contraditório. As decisões continuarão a ser tomadas, circulando entre as elites, os experts e os estrategistas, sem considerar qualquer opinião coletiva. Nossa impotência é total, apesar ou mesmo em função da informação, da qual estamos saturados. Ruanda: a mídia dizia claramente onde se encontravam os assassinos, os instigadores (onde estávamos de resto), e, contudo, o caso seguiu seu curso. Total, a informação não tem nenhuma consequência. O consenso e a covardia coletiva acham um álibi na informação geral. Esta cumpre o papel de bisturi separando para sempre as articulações do poder, em todos os países do mundo, de toda vontade política, cicatrizando como que com ferro quente as contradições que daí podem resultar.

Nessa fratura entre os hilotas e as elites, não adianta ridicularizar ou lamentar, cobrindo-se com as sinuosidades da esquerda divina e com sua arrogância democrática, a estupidez das massas, vítimas da mídia e do sistema eleitoral, como se fez, ainda recentemente, nos casos da Itália e de Berlusconi, ou, na França, nos casos de Le Pen e das eleições municipais. Tudo isso demonstra uma análise míope e convencional da razão política.

No fundo, tudo se passa como se as massas « cegas » tivessem uma visão mais sutil do que os intelectuais « esclarecidos »: ou seja, a consciência de que o poder é um lugar vazio, corrompido, sem esperança e que se deve colocar nele logicamente homens com o mesmo perfil - vazios, grotescos, histriônicos, charlatães - encarnando idealmente a situação.

Berlusconi, por exemplo... O mundo político tal qual é corresponde ao único « real » possível, mesmo se não é racional. Se queremos mudar algo, precisamos prestar atenção à realidade propriamente dita, o que significa outro assunto. Berlusconi e Le Pen são o que são, e toda recriminação às massas « irracionais » procede de um iluminismo ingênuo (tão astucioso quanto politicamente correto). Entretanto, não cabe contestação ao fato de que não suportamos essa situação, nem Berlusconi, nem Le Pen, nem a degenerescência atual do político.

Devemos levar em conta a evidência contraditória de termos o sistema que merecemos e de que, elemento relevante, não o suportamos. Forma de dilema insolúvel.

Podemos ter uma reação visceral, antimassa, antibovina, antiFrança profunda.

Mas também uma reação visceral antielite, anticasta, anticultura, antinomenclatura.

É preciso estar do lado das massas frágeis ou dos privilegiados arrogantes (sobretudo quando apoiam as massas)? Não há solução. Estamos presos entre dois integrismos: o populista (ou islâmico e fundamentalista) e o liberal, elitista, do universal e da democracia forçada. Fanatismo das Luzes que não sabe mais a quais valores aderir e para o qual o outro, o integrismo populista e islâmico, serve de alvo providencial. Mas ao qual, com a mesma intolerância, tampouco reconhece o direito moral e político de existir. Ambos operando sobre o mesmo fundo da indiferente nova ordem mundial. Existe ainda lugar entre os dois para o uso profano da liberdade?

 

(4 setembro de 1995)

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