Adiós, Baby

Adiós, Baby

Uma página de romance

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Caiu, finalmente, sob o impacto da terceira bala, que lhe entrou acima do coração, em diagonal. Parecia até pirraça com o assassino. Quem teria imaginado tamanha capacidade de resistência? Talvez ele tenha até se perguntado, no último momento, quando o cano da arma ainda o contemplava, um gargarejando sangue, o outro prestes a vomitar mais chumbo, por que tanta vontade de sobreviver? Desabou na calçada com a mesma falta de jeito com que caem no futebol esses atacantes inofensivos dos sábados à tarde, vencidos pela falta de habilidade para manter-se em pé diante de um adversário visivelmente superior. Atacado, morreu sem expressar a menor defesa, exceto pela insistência, quase teimosia, em continuar vivo, frente a frente com o matador que nem sequer o olhava.

Tinha as mãos em concha sobre o ventre como se segurasse as tripas depois de ter levado uma facada. Mas nenhuma bala o atingiu no estômago. No canto esquerdo da boca, mais intenso que o filete de sangue, corria uma gosma esbranquiçada que descia pelo pescoço e sumia sob a gola da camisa branca. Os olhos esbugalhados, na hora da queda, avolumaram-se como duas bolas vermelhas, mas de um vermelho sujo, cor de menstruação, que invadiu o branco do olho, dando-lhe o aspecto de um catarro recém cuspido no chão, até que as pálpebras desceram, um pouco depois. Olho de cão raivoso.

Um fio de sangue escorreu diretamente para a sarjeta e rolou pelo bueiro, o único desentupido, por situar-se numa travessa sem movimento, longe da esquina das duas principais ruas do bairro, com frequência alagado pelas chuvas de verão, cujos moradores, os da travessa, quase todos aposentados e ranzinzas, não davam trégua para o DEMAE. Na vida, tinha sido feio. Na morte, mostrava-se horrendo, com o rosto macilento retorcido numa careta de incredulidade e de medo. Se não tinha sabido viver, o que parecia inegável, não encontrara tempo para refletir sobre a forma menos indigna de morrer. Faltara-lhe até mesmo a sorte, ou a perspicácia, de tombar na contramão, o que teria acontecido se não houvesse inclinado o corpo para a direita, estatelando-se na calçada. Com isso, perdeu a última chance, quem sabe a única da sua vida, de bloquear o caminho de alguém. Tarde demais para virar o jogo.

Alguns passantes, assim que o criminoso virou as costas, ameaçaram aglomerar-se para vê-lo entregar a alma, o que já estava feito. Por medo ou descaso, não ficaram mais de cinco minutos em torno da carniça. O assassino, depois de se inclinar por um segundo, afastou-se quase sem pressa, com passos malemolentes. Vestia-se de preto. Inteiramente de preto, inclusive de boné preto, com a aba virada para trás, e óculos escuros, como se estivesse de luto pelo infeliz que acabara de executar. O morto, além de magro, era calvo. Uma velha apareceu com as páginas policiais de um jornal sensacionalista e cobriu o cadáver com míseras três folhas. Era apenas um saco de ossos do tamanho de um cachorro grande e esquelético atravessado na calçada lamacenta.

A velha benzeu-se. Na manchete da página que cobria o rosto do presunto, em grossas letras escuras, ao lado de uma fotografia desfocada de uma mulher assassinada, lia-se: “Estuprada e furada com 18 balas”. Na folha que cobria o meio do corpo, certamente a capa do jornal, embora não fosse possível identificar o nome da grave e comedida publicação, uma loira seminua exibia seios de silicone e coxas de boxeador. Um sujeito desdentado, que não desgrudava da velha, comentou, rindo: “Ao menos esse não foi estrupado”.

Um vira-lata amarelo cheirou os pés do defunto e, depois de coçar-se um pouco, refugou o sangue ainda empoçado sob o sovaco do executado. A polícia chegou meia hora depois. Os curiosos, meio de sobreaviso, reapareceram. O delegado René Manhãs parecia confuso. Usava um terno verde-garrafa amarrotado com manchas de café na lapela e estava com a barba rala por fazer, o que lhe dava uma curiosa semelhança com o morto. Eram iguais na extrema feiura. Examinou o local de crime com displicência, como se pensasse em outra coisa, em algo infinitamente mais importante. Era estrábico. Vesgo e narigudo. Odiava mortes em sextas-feiras.

Enquanto o pessoal especializado colhia as informações possíveis, o investigador enxugava o narigão vermelho com lenços de papel de aparência lamentável. Estava, ultimamente, sempre gripado. Culpa dos choques de temperatura que o ar-condicionado provoca. Assoava o nariz trinta vezes por dia e guardava nos bolsos toneladas de ranho. Tinha mais no que pensar. Visivelmente, tudo aquilo, aquele assassinato despropositado e canhestro, parecia-lhe inconveniente, fora de hora, e de muito mau gosto.

*

Quando releio esse fragmento da minha novela Adiós, Baby (Sulina, 2003), penso no que vejo pelas janelas dos ônibus e baixo os olhos. Nunca sentimos tanta indiferença pela morte, essas mortes anônimas, essas que nunca serão esclarecidas (quem se importa?) e não passarão de estatísticas tediosas ou de cadáveres na câmara fria onde apodrecem os mortos do IML.

 


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