Agenda de quase sexagenário

Agenda de quase sexagenário

Da esteira à colonoscopia

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      Na coluna de ontem uma frase ficou incompleta: o Brasil teve 20% das mortes do mundo por pandemia na última semana. No todo, tem 10,58. Tento fazer um parêntesis. Pensar com algum humor para não chorar. A vida do quase sexagenário é agitada. Todo dia precisa consultar a sua agenda e ouvir as questões básicas: já andou na esteira? Se não andou, encontre uma explicação. Já fez pilates? Se não fez, espiche-se. Marcou a colonoscopia? Fez o toque retal? Quando não toma qualquer medicamento de uso contínuo, arranca exclamações dos ouvintes, até dos médicos. Toda hora tem inimigo novo: o glúten, a próstata, o coração. O glúten, que era desconhecido não faz muito tempo, agora é caçado como um criminoso da pior espécie. De minha parte, dou trabalho aos diagnósticos: não fumo, não bebo álcool, não tomo café, não como coisas gordurosas, não ingiro bebidas ácidas, não tenho queda por chocolate, ando caminhando meia hora por dia na esteira. Sou um chato.

      Como salada todo dia. O lanche da noite é parcimonioso. Durmo oito horas. Se falo de mim, sempre digo isso, é para prestar um serviço público, como quem pergunta: como é contigo, leitor? Os exames vão ficando mais complexos. Chega o dia em que os invasivos entram na agenda. Os únicos excessos que tenho cometido nos últimos tempos são as críticas aos negacionistas, aos neotáticos e ao bairrismo de cariocas e paulistas. Nunca vi nada igual. Por moderação, falamos “nós, os gaúchos”. Tem até título de livro assim. Os cariocas usam um singular impressionante: “Carioca não gosta de dia nublado”. O assunto, porém, é a agenda do homem que quer viver mais alguns anos. Caminhar na esteira exige tênis especial para não provocar impacto nos joelhos, velocidade certa para não abalar o coração, horário adequado para não provocar muitos banhos e ressecamento da pele com água quente. É uma operação complexa, delicada, que exige supervisão.

      Até os cinquenta anos o homem caminha por conta própria. Nada mais natural. Depois, precisa reaprender a andar. Muito lento, não libera as substâncias renovadoras. Muito rápido, pode matar. Tem a roupa certa, o tempo certo, o lugar certo, a intensidade certa. Certo? A aparelhagem é importante: tênis, fone de ouvido, música adequada ou podcast. Como se sabe, podcast é rádio gravado. Mas se disser isso revela mais do que a idade: mostra certa rabugice de velho. Idoso é o termo que se usa para subir no ônibus sem pagar. Terceira Idade é o eufemismo para velhice. Melhoridade já é abuso retórico. Velho é o insulto para quem chama podcast de rádio gravado. Velho está sempre sob suspeita de não ser suficientemente tecnológico. Não basta ser jovem. Precisa não parecer velho. A velhice é um estado tecnológico.

      Agenda lotada. Neste ano de pandemia, eu me consultei com onze tipos de especialistas. Melhorei muito o meu vocabulário médico. Já arrisco alguns diagnósticos. Falo horas sobre sintomas disto e daquilo. Cobro dos amigos o que já fiz e o que ainda devo fazer. Não faço mais nada que não possa ser medido, auscultado, transformado em gráfico de calorias e outros parâmetros. Quando andava no parque, me questionava: que benefício isso me traz? Pensando bem, sou extremista.

Nos tempos da normalidade a agenda era outra: café em Paris.

 


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