Allende, Estados Unidos, Quino e Mafalda

Allende, Estados Unidos, Quino e Mafalda

Heróis e vilões em tempos quentes de Guerra Fria

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Allende, não

 

      Arquivos costumam estragar narrativas construídas obstinadamente ao longo de anos de fake news. Um telegrama do embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, ao presidente dos Estados Unidos John Kennedy entregou muita coisa que se queria esconder: “O fundamental é organizar as forças políticas e militares para reduzir o seu poder e, em caso extremo, afastá-lo”. Tratava-se de João Goulart. O sucessor de Kennedy, Lyndon Johnson, era mais direto: “Devemos tomar todas as medidas possíveis, estar prontos para agir. Vamos ficar em cima de Goulart e nos expor se for preciso. Nós não podemos engolir esse cara”. Kennedy aceitou a sugestão de interferir nas eleições brasileiras de 1962: “Essa preocupação me levou a endossar a sugestão da CIA de que se fornecesse dinheiro a candidatos amigáveis”. Dizia-se que era teoria da conspiração.

      Na hora decisiva, um comunicado ao Departamento de Estado americano deu o serviço: “Estamos adotando medidas para favorecer a resistência a Goulart. Ações secretas estão em curso para organizar passeatas a fim de criar um sentimento anticomunista no Congresso, nas Forças Armadas, na imprensa e nos grupos católicos”. Disseco tudo em meu livro “Jango, a vida e a morte no exílio”. Gordon cunharia esta frase lapidar: “A eliminação de Goulart representa uma grande vitória para o mundo livre”. A “pátria da democracia e da liberdade” semeava ditaduras fora de casa. Passados 50 anos, documentos revelam que o mesmo se deu no Chile.

      Em 15 de setembro de 1970, o presidente Richard Nixon deu ordens para impedir a posse de Salvador Allende, eleito para governar o Chile. A documentação integra um dossiê intitulado “A opção extrema: derrubar Allende” liberado pelo National Security Archive. Um dos personagens do jogo era Richard Helms, diretor da CIA. Eleito Allende, os Estados Unidos estudaram a “fórmula Frei”, contar com Eduardo Frei como aliado no Chile para neutralizar Allende, e com a “fórmula caos”, boicotar o escolhido pelos eleitores chilenos. Frei não serviu. Allende tomou posse. Os Estados Unidos encontrariam em Augusto Pinochet o aliado ideal para derrubá-lo. Henry Kissinger disse para Helms: “Não deixaremos que o Chile entre pelo cano”. Nixon confidenciou ao secretário do Tesouro, John Connally: "Decidi que vamos tirar Allende (...) Ele é um inimigo (...) Vale tudo no Chile. Dê um chute no traseiro deles, ok?" Seria feito.

      Executado o trabalho sujo, começam as fake news cuidadosamente preparadas. Richard Nixon: "Bom, não fizemos isso, como você sabe, nossa mão não aparece". Kissinger: "Não fizemos. Ou seja, nós os ajudamos (...) criamos as melhores condições possíveis". Nixon: "Assim é e é assim que vai se apresentar". No golpe midiático-civil-militar brasileiro, Gordon legitimou Castelo Branco com o argumento mais pragmático possível: “Ele admira o papel dos Estados Unidos como defensor da liberdade”. O chato para alguns é que os documentos não ficam secretos para sempre. Resta, em último caso, insistir que a causa era nobre, a ditadura pela liberdade.

Quino e Mafalda

 

      Morreu Quino, o criador da Mafalda, aquela guria de seis anos engajada nas questões sociais e políticas do seu tempo. Quando me perguntam quem são os meus ídolos, sinto vontade de confessar: Asterix e Malfada. Esses dois personagens me servem mais de modelo do que qualquer figura convertida em estátua por padrão cívico. Quino deu Mafalda à luz em 1962. Ela se consagraria enfrentando os canalhas deste mundo e o “sopismo” como janta. Fã dos Beatles, Mafalda nunca teve papas na língua, tendo sido traduzida em 35 idiomas. Ela nasceu de mercado, como personagem de uma campanha publicitária dos eletrodomésticos Mansfield, e virou rebelde, contestando pais, costumes absurdos e desmandos?

      Entre os argentinos mais conhecidos no mundo estão Mafalda e Evita Peron. Mafalda nunca foi inocente. Dizia coisas assim: “Viver sem ler é perigoso. Te obriga a crer no que te dizem”. Quem não lê acredita facilmente que a Terra é plana. Quino viveu muito tempo em Milão. Em entrevista para a Folha de São Paulo, explicou: “Fui embora da Argentina em 76. Ninguém me mandou embora, ninguém me disse ‘Vamos matá-lo’, mas já estavam morrendo vários amigos meus, desaparecendo… Então, tendo um trabalho como o meu, em que posso trabalhar em qualquer parte, era estúpido permanecer ali. Quis voltar em 79, voltei por um mês. Depois, em 80, voltei por dois meses. E em 83, quando Alfonsin ganhou e se supunha que íamos ter uma democracia…” Mafalda ria com a definição de democracia: governo do povo, para o povo e pelo povo. Não conhecia tal regime, que pode ser utopia.

      Uma das tirinhas mais sarcásticas de Quino mostra a guria que falava por ele perguntando à mãe no tanque de lavar roupa: “Que gostaria de ser se vivesse?” Asterix resistia ao império romano. Mafalda, ao império americano? O império romano usava soldados. O império americano, soldados, filmes e quadrinhos. Era preciso reagir na base do dente por dente. Foram 1928 tirinhas com Mafalda no comando das operações. Em 1973, Quino parou ao sentir que seria parado pelo mau humor do poder. Mafalda não fechava a boca. Soltava tiradas desconcertantes e perigosas: “O cassetete de um policial é o bastão para abolir ideologias". Ou a borracha para apagar ideologias. A polissemia era o seu forte.

Mafalda foi a mais politizada das crianças. Tudo na sua fala era político, até o desapreço por sopa. O laço vermelho na cabeça incomodava defensores da “neutralidade” infantil. Na verdade, ela era independente: “A sopa é para a infância o que o comunismo é para a democracia!”, afirmava. Contemplava os dois lados: “Se o Fidel dissesse que é boa, todos diriam que a sopa é ruim!” Ou: “Opinião eu respeito, fascismo eu combato”. Aquilo que ela possa não ter dito, atribuíram a ela, pois se tornou uma voz coletiva. O seu forte era a relativização: “Já que há mundos mais evoluídos, por que eu tive que nascer justo neste?” Boa pergunta. Desanimada, bradava: “Parem o mundo que eu quero descer”. O problema, parece, é que o mundo não tem saída de emergência. Quino atendia burocratas e cartórios com o nome de Joaquín Salvador Lavado. Como disse o grande Julio Cortázar, "não importa o que eu penso da Mafalda; importa o que ela possa pensar de mim".

 

 

 

 

 

 

 


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