Ano novo, vida velha?

Ano novo, vida velha?

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Metamorfoses do tempo


 

 

     Há 37 anos, em 1º de janeiro de 1980, botei o pé no estrada na cola do meu primo Eleú. Eu não teria dado o primeiro passo sem ele. Deixei Santana do Livramento para correr atrás de alguns sonhos. Queria ser jornalista, ator, professor e escritor. Tenho sido jornalista e professor. Busco obstinadamente ser escritor. Perdi pelo caminho o projeto de brilhar nos palcos do Rio de Janeiro. Será que ainda dá tempo de largar tudo para abraçar o teatro? Estou velho? Há quem mude de time de futebol, de partido político e até de sexo aos 60 anos.

Farei 55. Conheci a vida das pensões, das repúblicas, dos centros acadêmicos e das casas divididas com amigos. Fui boêmio precoce e poeta tardio. Larguei a boemia para dormir e cedo e adotei a poesia para sonhar tarde. O tempo é para mim a grande questão metafísica. Sei que ele não passa. Nós é que passamos. Tenho a impressão, porém, como quase todo mundo, de que ele nos escapa. Qual o meu futuro? O tempo dirá. No meu jardim secreto, cultivo poemas. Tenho amigos que consideram meio indecente alguém escrever poesia. Já fui aplaudido e esculhambado por alguns poemas que publiquei. Não poderia ser diferente. É da minha sina. A sina dos provocadores.

Nesses quase 40 anos de caminhada fora de casa, tenho me agarrado na arte para manter a cabeça fora da água quando sinto o dilúvio se aproximando. Vejo dois caminhos para a transcendência: a religião e a arte.

Esses caminhos podem se unir e levar à redenção e ao paraíso.

Sei que nestes tempos de leveza e humor toda manifestação reflexiva tende a ser vista como pedante. Como alguém se atreve a pensar em voz alta sobre o sentido da vida, a passagem tempo, o devir e os sonhos?

Estou entre aqueles que entendem ser fundamental a cada começo de ano fazer o balanço da vida. O que fiz? Como fiz? Por que fiz? O que desejo fazer? O que pretendo ser? Com o que posso sonhar? O que ainda posso esperar? Por que falar disso logo agora quando muitos estão tentando curar a ressaca? Sinto que é um bom momento. Começo de ano é tempo de promessas: parar de fumar, emagrecer, fazer exercícios físicos, ser menos agressivo, viver mais, amar mais, sofrer menos, trabalhar menos, não implicar com os outros, aprender tolerância e suavidade.

Não serei um homem novo em 2017. Já me basta ser um velho homem com novos horizontes. Quero ser algumas coisas bem simples: mais doce e mais firme, mais flexível e mais incisivo, mais direto e menos frontal, mais irônico, quando necessário, e menos sarcástico, mais rápido nas respostas às malices do dia a dia e mais lento nas indelicadezas, mais convincente e menos obstinado, mais sedutor e menos persuasivo, mais sutil e menos sinuoso, mais corrosivo e menos ácido, mais seguro e menos autoritário, mais gentil e menos submisso. Só isso.

Há quatro décadas persigo essas metamorfoses. Mudei muito para continuar o mesmo.

Não traí minha essência. Tenho tentado lustrar minha casca. Carrego minha casa nas costas.

Quero enganar o tempo para que ele não me dobre.

Minhas promessas


 

     Não concebo Natal sem peru nem começo de ano sem promessas de bom comportamento. Como só um pedacinho do peru. Mas o faço com gosto e ótimos pensamentos. Cumpro só uma partezinha das minhas promessas. As circunstâncias não me deixam ir além disso. Sou humano. Não prometo me esbaldar nem realizar tudo o que deveria. Tenho boas intenções. Que ninguém me responda com um clichê indelicado. Se o inferno está cheio de boas intenções, nosso mundo muito terreno transborda de más disposições.

Em 2017, prometo não fazer muitas promessas. O momento é de economia e de cortes generalizados. Podo 80% do que pretendia prometer e baixo para 10% o que me comprometo a efetivamente realizar. Fico com apenas estas promessas exequíveis: prometo ser justo, verdadeiro, transparente, atencioso, correto, judicioso, pertinente, afável, simpático, profundo, sem pedantismo, leve, sem ser raso, crítico, só na medida do necessário, tolerante, sem ser trouxa, firme, sem ser impositivo, amoroso, amigável, paciente, atento, disponível e boa gente.

As minhas promessas são como os orçamentos públicos. Exageram as receitas e subestimam as despesas. O balanço do meu ano findo também se assemelha ao dos executivos em fim de mandato. Juro que está tudo em ordem. O sucessor garante que o déficit é muito maior. Em 2016, ouvi menos Nana Caymmi do que deveria. Por que Nana? Estou ouvindo enquanto escrevo e redescobrindo minha admiração por sua voz. Conversei menos com os meus amigos do que gosto. Fui objetivo demais, produtivo em excesso, cegamente focado.

Prometo que em 2017 soltarei pandorga no cerro de Palomas, sentarei nos jardins da universidade para pensar na vida e bater papo com colegas e estudantes, telefonarei para gente de quem, quando vejo seus números nas minhas agendas, sinto uma enorme saudade, atravessarei mais vezes por dentro do Mercado Público de Porto Alegre, andarei de bicicleta na Redenção, montarei a cavalo mais vezes, continuarei jogando futebol aos sábado, torcendo para não ter as lesões de 2016, abraçarei mais forte as pessoas de quem gosto, jogarei mais conversa fora, pois toda boa conversa é bola dentro.

Em 2016, pensei como um gestor de metas, executivo das próprias ambições. Povoei meu imaginário com objetivos, números, tarefas, passivos, ativos, realizações e análises de desempenho. Em 2017, quero mais poesia, devaneios e perambulações. Mas desejo publicar três livros que estão prontos: um estudo de sociologia do imaginário; um romance no qual um homem busca a sua transcendência; e o resultado de uma longa pesquisa sobre as raízes do conservadorismo brasileiro e a abolição da escravatura na imprensa e no imaginário social. Tudo.

A minha agenda de 2017 começa agradavelmente recheada. Em fevereiro, serei professor visitante na Universidade de Montpellier. Enfim, prometo não ser tão severo com meus criticados nem tão indulgente com meus elogiados. Prometo levantar a cabeça quando caminho e sorrir mais para quem me cumprimenta na rua. Prometido.

A vida no Ano Novo também se renova?

Ano Novo, vida Nova?

Ou vida velha?

Só o tempo dirá.

 

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