Antes, durante e depois do Caderno de Sábado

Antes, durante e depois do Caderno de Sábado

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Por Eron Duarte Fagundes

O Caderno de Sábado do Correio do Povo de 27 de agosto de 2016 tratou do frio como personagem da literatura, um pouco o frio como linguagem narrativa de certas paragens. Todos os textos desta edição do Caderno estiveram soberbos: literatura em grau máximo.

Mas o Caderno de Sábado deste dia começou antes do Caderno de Sábado. Começou na crônica de Juremir Machado da Silva, “Retorno ao sul”, em que, entre outras coisas, o cronista fala do novo romance do ficcionista gaúcho Luiz Antônio de Assis Brasil, “O inverno e depois”: “O retorno ao Sul do personagem de Assis Brasil tem algo de dramático, de melancólico e de suavemente insuportável. Uma daquelas dores que se tem prazer em sentir.”

O escritor, tradutor, pensador Donaldo Schüler explode em tentáculos navegando por Homero, Hesíodo, Ovídio, Horácio, William Blake, Henrik Ibsen, Friedrich Hölderlin, Georg Trakl, T.S. Eliot, Orham Pamuk e, pasme-se, o Estreito de Magalhães. Schüler anota, disparatado e delirante: “Noites de ventos, de uivos, de espantos, de inventos, noite de memórias, de histórias, eventos de outros tempos, recordações de versos e reversos, apontamentos, pensamentos de companheiros de viagem:”. O título é significativo: “Calafrios em noite fria.”

Deonísio da Silva visita Dostoievski. O artigo “Mãe e filho numa noite fria de Natal” vai habitar o conto “A árvore de Natal na casa de Cristo”, o Dostoievski contista, o que submergiu diante do autor de narrativas longas. Observa, todavia, Deonísio: “Este conto é referencial na obra de Dostoievski, autor de uma espiritualidade de complexas sutilezas.”

E no entanto a literatura de nossa língua vem vindo, nevada. Longe dos trópicos brasileiros. Em “E a neve engoliu o mundo” a concentração de Paulo Ricardo Kralik Angelini se debruça sobre “Entre a neve”, conto do português Eça de Queirós, outro mais conhecido e estimado por seus romances. O articulista captura o argumento narrativo de Eça: “A neve também é elemento de cena na literatura portuguesa e, assim como em icônicos textos russos, pode escapar da estereotipada imagem festiva de cartão-postal e avançar para a de um cenário caótico e de sofrimento absoluto.” Sofrimento necessário como aquelas dores que se tem prazer em sentir?

Ricardo Barberena faz uma crônica-ensaio sobre estas relações entre o escrever e o frio, “Literatura e frente fria”. “Enquanto na tv ecoam os gritos de uma ensolarada arena de Copacabana, observo, pela janela de meu apartamento, o Guaíba. O céu continuava acinzentado em mais uma fria manhã de inverno porto-alegrense. Os Jogos Olímpicos parecem ser realizados num país distante, em pleno verão.” E ainda refere: “O crítico brasileiro estabelece novamente a simbiose entre clima e literatura.” O frio determinaria mesmo o modo de ser de nossa literatura para o sul? Os extensos campos gelados que o escritor do sul vislumbra teriam a mesma função das longas secas nas caatingas nordestinas para nossos autores lá de cima? O mundo perdido da caatinga, “parado e morto”, que abre um romance de Mário Palmério (Vila dos confins, 1956), tem a mesma força de estrutura narrativa que o silêncio na solidão do pampa frio na abertura dum épico de Erico Verissimo, “talvez até pudesse escutar o sereno na solidão” (O continente, 1959)?

A professora Léa Masina, uma das mais brilhantes estudiosas literárias do sul do país, vai a Anton Tchekhov e produz um incisivo ensaio: “Angústia: o frio que invade a alma”. O objeto de estudo é Tchekhov, contista nato, diversamente de Eça e Dostoivevski, romancistas antes de tudo. Eis: “Com esse material, escreve como quem respira, tendo por objeto narrativo o homem em sua complexidade. Tchekhov narra o fluir de sentimentos que asseguram a cumplicidade do leitor pela sinceridade e realidade que deles advém.”

Se o Caderno de Sábado começou antes do Caderno de Sábado, na crônica de Juremir, vai também acabar depois do Caderno de Sábado, num conto de outro escritor do sul, Alcy Cheuiche. Onde topamos este conto? Numa página dedicada à Expointer. Em “Um cavalo e um ginete. Dias lendas do pago.” Cheuiche começa com o narrador habitual, a sombra do autor, e depois passa a palavra a uma personagem que conta a história; há uma autenticidade que aproxima a literatura da reportagem. “Itaí Tupambaé já galopa há alguns anos pelos Campos Elíseos, mas Vilson Charlat de Souza, um dos mais importantes domadores e adestradores de cavalos do Brasil, vive em Bagé, cercado do carinho e respeito de seus conterrâneos. E é ele quem nos conta, aos 82 anos, sua própria história.” Itaí Tupambaé é um cavalo e, decompondo as sílabas indígenas de seu nome composto, o narrador-autor explica o nome e a verdade do animal: água de pedra, propriedade de Deus.

Antes, durante e depois do Caderno de Sábado sou surpreendido pela força que as palavras têm sobre mim. Especialmente quando são conduzidas por gente que sabe escolhê-las e misturá-las para revelar o espírito humano.

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