As regras do jogo ocidental

As regras do jogo ocidental

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A regra do jogo ocidental democrático é cristalina: cada um pode acreditar no que quiser. Mas não pode tentar impor a sua crença a outros. Tem o direito, porém, de tentar convencer os demais a compartilhar a mesma fé se ela não infringir qualquer lei. Não posso defender um credo racista. Para o restou, posso crer em tudo. Em contrapartida, qualquer um pode criticar essa crença, mostrar seus limites e caricaturá-la em charges ou piadas.

O sagrado de cada um não pode se sobrepor ao profano de outros.

É um sistema complexo. Aquele que descrê não pode invadir o espaço do crente para dentro dele tentar desqualificá-lo. Cada um no seu quadrado. Nenhum cartunista pode pregar charges contra o islamismo dentro de uma mesquita. Isso nem passa pela cabeça de pessoas razoáveis. Se acontecer, haverá punição e rejeição da sociedade. O islamismo pode proibir que seus adeptos coloquem Maomé em imagens. Essa interdição, porém, só pode valer para quem é muçulmano. Os demais não estão obrigado a obedecer a determinações de autoridades às quais não devem respeito. Um adepto que não segue os valores da sua fé pode ser expulso.

É uma questão interna. Fato.

Por que fazer aquilo que ofende o outro? Essa pergunta tem sido repetida incansavelmente depois dos atentados de Paris. Porque na regra do jogo ocidental cada um tem direito até mesmo a blasfemar. O que pode fazer o ofendido? Protestar, criticar, processar, fazer campanha para que ninguém leia o jornal ofensor nem ouça aquele que ofende. Quem não aceita essa regra do jogo não pode viver no mundo ocidental, pois esse é o fundamento das sociedades abertas. Ceder em relação a isso equivale a deixar o outro, aquele que não aceita essa regra do jogo, fixar as novas normas. Tem gente dizendo que ofender o sagrado alheio é provocação desnecessária. Lembra a posição de quem, falando de um estupro, reconhece a monstruosidade do ato, mas enfatiza que a estuprada poderia ter evitado provocar o agressor com o seu modo de ser, com as suas roupas sumárias e as suas atitudes.

No jogo ocidental, eu posso idolatrar um deus e meu vizinho pode escrever um livro contra esse mesmo deus ou ironizá-lo em um milhão de piadas. Se eu for convincente, poderei convencê-lo a fazer outra coisa. Se não for, terei de me controlar e aceitar a diversidade de opiniões. O Ocidente é politeísta. Nesse universo ocidental construído ao longo de séculos, com grande ajuda dos iluministas franceses, só deve valer o argumento que convence. Aceitar a proibição de satirizar o sagrado significaria transformar a fé privada em valor público universalizado. Eu, pessoalmente, não tenho gosto por rir das crenças de quem quer que seja. Mas aceito que outros não pensem como eu. Esse modelo tem a vantagem de dar espaço a todas crenças e também à contestação delas.

Um modelo respeitoso restritivo torna todos reféns de uma crença. É o modelo teológico.

Voltarei combateu a intolerância religiosa.

Hoje, deve-se combater a intolerância com a religião.

Desde que a religião seja capaz de também ser tolerante.

O que está em jogo? A capacidade de o Ocidente continuar fixando as regras do seu jogo sem se tornar refém do que recusa. Não se trata de recusar o diferente, mas de preservar as regras de casa.

 

 

 

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