Avenida da Ilegalidade e da Ditadura

Avenida da Ilegalidade e da Ditadura

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      A justiça gaúcha decidiu que a avenida da Legalidade e da Democracia deve voltar a se chamar Castelo Branco. Por que a capital do Rio Grande do Sul homenageia Castelo Branco, o militar que derrubou, com apoio dos Estados Unidos, o governo legalmente constituído do gaúcho João Goulart? O golpe dado por Castelo Branco afundou o Brasil na violência, na tortura e nas execuções desde o seu começo. Vai uma dica de livro: “Torturas e torturados”, de Márcio Moreira Alves. O jornalista, no calor dos acontecimentos, fez uma série de reportagens sobre o horror disseminado pela ditadura de Castelo Branco na “Operação Limpeza”, entre abril e agosto de 1964.

O regime empenhou-se em censurar o livro. A ditadura não queria que se lessem afirmações comprovadas como esta: “A revelação de que membros do Exército nacional, que se gabava de ser o ‘povo fardado’ e da Marinha de Guerra, com sua tradição de cavalheirismo aristocrático, estavam torturando e promovendo a tortura de prisioneiros quebrou um preconceito, matou uma ilusão profundamente brasileira e acendeu uma geral indignação (...) Ao descobrir que alguns desses cidadãos exemplares, vizinhos tranquilos, se entregavam ao flagelamento de presos políticos e tinham sua abjeção acobertada e fortalecida por alguns dos seus chefes, a consciência brasileira levou uma bofetada”.

Márcio Moreira Alves deu nomes aos bois e aos torturadores. No Nordeste, os militares Darcy Villocq Viana, Hélio Ibiapina e Antônio Bandeiras. Descreveu os métodos de tortura: “corcovado (o torturado fica em cima de um muro, de costas para o abismo e de frente para baionetas ou metralhadoras), ginástica, algemas, pau-de-arara, banho chinês, telefone, choques elétricos, tenazes, churrasquinho (colocar uma mecha de papel no ânus de alguém e acendê-la), sabão em pó nos olhos e geladeira (enfiar num refrigerador de carnes, com temperatura de 30 graus negativos, um prisioneiro por até três minutos”. Houve uma incrível sequência de “suicídios” e de surtos atestados por militares.

O jornalista investigou e descobriu o que era visível a quem quisesse ver e aceitasse correr o perigo de pagar por enxergar muito. Castelo mandou Ernesto Geisel conferir. Ele foi, viu, voltou e disse placidamente nada ter encontrado. Márcio mostrou que “as torturas não buscavam informações urgentes”, era “sadismo absolutamente gratuito”, “vingança pessoal, ou desrecalque das frustrações de carcereiros”. Hélio Ibiapina ironizava: “Nós torturamos para não fuzilar”.

No período de Castelo foram decretados os atos institucionais 1 e 2. Pelo AI-1 Castelo deu-se o poder de “suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão e cancelar mandatos de legisladores federais, estaduais e municipais”. O AI-2 cancelou as eleições para presidente, vice-presidente e governadores, autorizou novas cassações de mandatos, interveio no Supremo Tribunal Federal e aboliu os partidos políticos, criando um bipartidarismo de opereta.

Se alguém acha pouco o livro de Alves, leia Thomas Skidmore: “Quais foram as dimensões globais da repressão? Talvez em sua maior parte tenha ocorrido nos dez dias entre a deposição de Goulart e a eleição de Castelo Branco, embora no Nordeste tenha continuado até junho”. Entre dez mil e 50 mil presos, mortes, expurgos. Na primeira leva de cassados, 441: três ex-presidentes da república, seis governadores, 55 deputados federais e mais uma amostragem de intelectuais, líderes sindicais e outros suspeitos de “subversão”. John Fuster Dulles também ajuda a lembrar do horror: até 9 de outubro de 1964, fase ainda de implantação de Castelo, 4.454 aposentadorias forçadas, 1408 demissões do serviço público, 2985 punidos, etc.

A ditadura implantada por Castelo Branco criou um Brasil de paz e prosperidade? Só na imaginação de alguns. “Estado e oposição no Brasil”, de Maria Helena Moreira Alves, desfaz qualquer ignorância. A inflação do período militar andou em torno de 20% ao mês. A dívida externa pulou de 3,9 bilhões de dólares, em 1968, para 12,5 bilhões em 1973: “A política governamental elevou acentuadamente a participação dos membros mais ricos da população na renda global diminuindo a dos 80% mais pobres”. Em 1970, 50,2% dos brasileiros ganhavam menos de um salário mínimo. Em 1972, 52,5%. Eram 78,8% dos trabalhadores ganhando até dois salários mínimos. Passamos de 12 para 14 horas de trabalho diário para comer. Em 1959, um trabalhador precisava de 65 horas e cinco minutos de trabalho para comprar a cesta básica fixada por decreto de 1938. Em 1963, 88 horas. Em 1974, 163 horas e 32 minutos.

Saltamos para 25 milhões de crianças passando fome. Uma pesquisa revelou que 60% das crianças entrevistadas trabalhava mais de 40 horas por semana. Educação pelo trabalho: 18,5% da população entre 10 e 14 anos de idade trabalhava. Efeito pedagógico: 63% das crianças entre 5 e 9 anos de idade, em 1976, fora das escolas. Algo a comemorar nisso? Márcio Moreira Alves cravou: “Castelo Branco instaurou um inédito processo trujilista de separação de uma casta militar, até então inexistente, do resto do país”. Como ele diz, “só a verdade fere”.

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