Balanço do ano da peste

Balanço do ano da peste

A notícia assustadora é que ainda não acabou

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      Ainda não acabou 2020, o ano da peste, o ano da pandemia, o ano da mortandade. Foi um ano ruim. Não fosse o protocolo, diria algo pior, como se fala, às vezes, quando a língua se destrava inconformada. Eu, pessoalmente, peguei a Covid e paguei com sequelas. Não bastasse isso, como tantos, vi familiares, amigos e colegas sofrerem também. Alguns ainda estão hospitalizados. O nosso Paulo Mendes, das deliciosas “campereadas”, foi levado a amargar uma dura temporada de internação. O vírus pintou o sete: foi leve, por vezes, em pessoas do grupo de risco e duro com jovens, mas tem matado mais idosos, como se o comportamento aleatório fizesse parte da provação.

      Foi o pior ano da minha vida. Das nossas? Sempre tem alguém que passa incólume e até pode dizer que foi o melhor ano da sua existência. No geral, um desastre. E, vale repetir, ainda não terminou. Poucas vezes se dependeu tanto da ciência e, ao mesmo tempo, se desdenhou tanto dela. Os negacionistas esbaldaram-se, exibindo a própria ignorância como um troféu, orgulhosos do obscurantismo, da burrice e da coragem desnecessária e perigosa. Um pouco mais e enfrentavam o vírus à mão armada. Dado que o inimigo é invisível, preferiram não enxergá-lo. Teve político que sofreu crítica pelo que fez de menos errado, ou por seu único acerto, como adotar restrições ao funcionamento da economia para diminuir a propagação do mal.

      Velhos e pertinentes argumentos como “só queremos trabalhar” esbarraram numa situação de exceção: a necessidade de ficar em casa. Nem todos entenderam a diferença imposta por um fenômeno que se imaginava enterrado na história. Grandes cidades fecharam. Países adotaram estado de imobilidade. Governantes de esquerda e de direita recorreram ao mesmo método de isolamento. Depararam-se com os mesmos adversários: o vírus e os defensores de manter a engrenagem funcionando a qualquer custo, o custo de vidas, o custo do engarrafamento hospitalar. A ciência deu show e inventou várias vacinas em menos de um ano. Os políticos que discursaram em defesa de manter a economia aberta e proteger a saúde das pessoas ao mesmo tempo não apresentaram a fórmula milagrosa capaz de realizar essa magia.

ROTINA – Quase um ano sem sair de Porto Alegre. Não, mais do que isso, sem sair do Bom Fim, meu bairro. Saí três vezes para ir ao hospital da PUCRS, uma para ser internado e duas para exames. Saí outra vez para ir ao centro da cidade. Quase um ano sem pegar táxi, ônibus, aplicativo, salvo nas ocasiões já citadas. Quase um ano sem ir a um restaurante, sem tomar um copo de água fora de casa, sem ir ao cinema, sem andar de avião, sem encontrar presencialmente quase toda a família, sem ir ao local de trabalho, fazendo tudo pelo computador. Um ano sem presença física, restrito a passeios no parque de máscara.

      Um ano que me ensinou a ser Poliana. Tenho relido e estudado as obras completas de Machado de Assis (31 volumes), olhado séries e filmes em doses industriais na Netflix e visto futebol como quem toma água (dois litros por dia). Eu e as torcidas de Grêmio e Internacional no mesmo refrão. Um ano de estupor e de surpresas. Por que tem gente que se recusa a usar máscara? Que papo é esse? Liberdades individuais? Por que se usa cinto de segurança então? Máscara é autoproteção e proteção a terceiros. Acima de tudo, é bom senso. O que explica andar na rua sem máscara? Estupidez, insensibilidade, indiferença, irresponsabilidade? Como saber? Um ano de reflexão sobre o egoísmo.

TRAPALHADAS – Um ano de perplexidade diante das declarações e maus exemplos de governantes: aglomerações, frases absurdas, desleixo e falta de pressa na adoção das soluções possíveis. Frases do ano da peste: “Só uma gripezinha”, “estamos no finalzinho da pandemia”, “precisamos que o vírus viaje um pouco” (Romeu Zema, governador de Minas Gerais). Um ano, estranhamente, em que muitos viveram como se nada estivesse acontecendo: festas, praias lotadas, abraços, comemorações, viagens. Algumas boas notícias brilharam no céu tormentoso: os americanos despacharam Donald Trump para casa, a extrema direita tomou um tranco, a solidariedade entrou em campo.

      Fecharemos o ano com duzentas mil mortes por Covid no Brasil? Quando se falou em 180 mil houve quem berrasse contra o exagero, contra a manipulação e tudo mais. E o que seria o tudo mais? Politização, partidarização, comunismo, antipatriotismo, covardia, etc. Um ano triste, melancólico, perdido, inesquecível, embora o melhor fosse esquecê-lo imediatamente. Quando seremos vacinados? Quantos serão vacinados? Quem será excluído? Ano de muitas perguntas e poucas respostas. Ano de desespero. O pior é que ainda não acabou. No período eleitoral tudo parecia resolvido. Passada a eleição, a realidade bateu na porta. Que ano miserável! E dizer que teve gente que passou o ano só pensando em outro ano: o ano de 2022. Feitas as contas, aplicados os fatores de impacto, que ano bom: estou vivo.


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