Boechat e o nariz de Darwin

Boechat e o nariz de Darwin

Da morte de Boechat a Leonard Mlodinow e o cérebro classificador

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O cérebro humano classifica, categoriza e generaliza. Segundo Leonard Mlodinow, em “Subliminar, como o inconsciente influencia nossas vidas”, sem isso seria muito difícil funcionar. A expressão “não generaliza” deveria sempre ser acompanhada de um complemento: “Não generaliza abusiva ou impertinentemente”. Quando se diz que fulano é parecido com beltrano, embora não sejam idênticos, nem sempre se é entendido. Acontece que se está identificando algum traço em comum. Uma biblioteca de fisionomias ainda vai provar que existe um certo número de matrizes faciais com ligeiras variações combinatórias de detalhes. As caricaturas e caracterizações de personagens funcionam por generalização.

      Mlodinow resgata a história de Charles Darwin, que quase não conseguiu embarcar no Beagle para a viagem que a mudaria a sua vida e a de todos nós, com a teoria da evolução das espécies, por causa do nariz. O capitão do navio achava que era possível interpretar o caráter de uma pessoa pelo formato do seu nariz. A avaliação dele sobre o nariz de Darwin merece ser citada. O nariz de Darwin revelaria uma pessoa “sem energia e determinação suficientes para a viagem”. Confesso que nunca tinha pensado em definir homens e mulheres pelo formato do nariz. O que indica o nariz de Jair Bolsonaro? Outro teste a fazer.

      O nariz de Charles Darwin era “grande e meio bulboso”. Ele mesmo, reagindo a ideia de um design inteligente definidor de tudo o que somos, brincou: “Você diria honestamente se acredita que o formato do meu nariz foi orientado e guiado por uma causa inteligente”. Muito já se escreveu sobre o nariz da Cleópatra. Acidente de percurso ou solavanco? O nariz de Darwin é mais um capítulo do estudo sobre o impacto das aparências em nossas escolhas supostamente racionais. Mlodinow relata o debate entre John Kennedy e Richard Nixon nas eleições presidenciais em 1960. Quem ouviu pelo rádio deu a vitória a Nixon. Quem viu na televisão, mesmo entre os partidários de Nixon satisfeitos com o seu desempenho radiofônico, considerou Kennedy vencedor. Nixon estava doente e não fez maquiagem.

      Aparências enganam e condicionam mais do que aceitamos admitir. Mulheres foram recrutadas para definir o físico de homens a partir de suas vozes gravadas. A maioria descreveu homens de voz grave como altos, músculos e com muitos pelos no peito. Em testes realizados por pesquisadores, convidados para uma eleição de mentirinha escolheram sempre os candidatos que, embora apresentassem as mesmas propostas e interpretassem o mesmo conteúdo, apresentava certo tipo de aparência, rotulada de “boa” e voz mais grave e sem picos de estridência. Temos muito caminho a andar para ir além dos estereótipos.

      Fica a advertência de Mlodinow: “Um ser humano, por natureza, só pode se espelhar nas emoções ou nas intenções dos outros. Essa capacidade está marcada no nosso cérebro, e não existe um botão que desligue isso”. Podemos fazer pose de racionais e de conscientes. A publicidade prova todos os dias que somos sensíveis ao que negamos. As emoções é que costuma estar no comando. Bom ou ruim? Depende das consequências do que fazemos.

O nariz de Ricardo Boechat nunca me chamou a atenção.

O meu cérebro sempre classificou o jornalista como confiável.

Pelo quê?

Pelo tom da voz, pela aparência e pela capacidade de passar credibilidade.

O que é isso?

Uma coisa meio mágica que conta muito na televisão.

Os comentários de Boechat ora me agradavam ora me pareciam conservadores demais.

Boechat foi um ótimo jornalista. Em alguns momentos, mostrou coragem e firmeza.

Fará falta.

Ainda bem que a televisão, assim como o capitão do Beagle aceitou o nariz de Darwin, permitiu a careca de Boechat. No espaço dos estereótipos, ele impôs o seu tipo.

 


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