Bolsonaro, Che e Ustra

Bolsonaro, Che e Ustra

Bolsonaro mistura para separar

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 Em entrevista à revista Veja, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que não vê problema no fato de Che Guevara ser assunto em sala de aula desde que se fale também aos estudantes do coronel Brilhante Ustra. Para Bolsonaro, Guevara foi um assassino. Ustra, como se sabe, foi um torturador, talvez o maior torturador do regime de 1964.  Certamente o mais emblemático, aquele que corporifica o regime. O que Bolsonaro espera: que se fale de Guevara e de Ustra como monstros sanguinários ou que o torturador brasileiro seja apresentado como um herói da pátria?

      O argentino Che Guevara era comunista. Em nome da sua ideologia, cometeu crimes. Ustra foi um militar de extrema direita. Em nome da sua ideologia, praticou atos hediondos. Bolsonaro odeia Guevara e ama Ustra. Muitos esquerdistas odeiam Ustra e amam Guevara. Qual a diferença entre um apaixonado por Ustra e um fã de Guevara? “Ser é ser percebido”, cravou o filósofo Berkeley. A frase queria dizer uma coisa. Virou outra: o importante é como alguém é visto, não como acha que se dá a ver. Jovens usam pelo mundo camisetas com a estampa de Che Guevara. Percebem-no como um cara que lutou contra a exploração capitalista com os meios possíveis. Lutou de maneira errada. Ustra é visto como um reacionário que agiu em favor do pior. Bingo!

      Ambos escolheram métodos equivocados. Mas Guevara, antes de ser ministro em Cuba, era um guerrilheiro. O Estado constituído era o seu alvo. A conduta de Ustra tem um agravante: ele agiu a serviço do Estado. Ou do governo ilegítimo que se apossou do aparelho estatal. Cada um deve ser condenado pelos erros que cometeu. O comunismo stalinista matou milhões de pessoas. O nazismo matou milhões por ser racista. Como diz Caetano Veloso, “cada um saber a dor e a delícia de ser o que é”. Os guerrilheiros que depuseram o regime vigente em Cuba estavam certos em combater uma casta parasita e abjeta encarnada pelo ditador Fulgêncio Batista e os seus. O regime que implantaram, em termos de liberdades civis, não foi melhor. Ustra nunca pensou em liberdade.

      Um democrata não se encanta com Che Guevara nem com Ustra. Quem foi pior: Guevara ou Ustra? Certamente Ustra. Mas Guevara tampouco merece louros. Essa comparação é um atoleiro: quanto mais se mexe, mais fede. Cada parte só vê os erros do oponente. O álibi dos defensores de Ustra é que ele só teria atuado em reação aos atos dos comunistas. A cronologia costuma ser adulterada para dar proteção às interpretações do “ustrismo”. Quem atirou primeiro? No caso brasileiro, os golpistas. Quem tiver dúvida, leia “Torturas e torturados”, de Márcio Moreira Alves, e “Estado e oposição no Brasil (1964-1984”, de Maria Helena Moreira Alves. Se calhar, leia também “1964, a conquista do Estado”, de René Armand Dreifuss. Nunca é demais conhecer fatos.

      A teoria dos dois lados, às vezes, gera absurdos: deve-se dar o mesmo tempo para teses que afirmam não ter existido câmara de gás nem holocausto? Deve-se contemplar do mesmo modo as ideias dos chamados terraplanistas? Jair Bolsonaro tem razão. Quando o presidente acerta, cabe reconhecer: é preciso falar de Ustra em sala de aula. Para dizer que foi um torturador abjeto, um personagem repugnante, como todo torturador. Defender Ustra é aplaudir a tortura.


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