Bolsonaro e as ruínas circulares

Bolsonaro e as ruínas circulares

Presidente fatura com o que recusava

publicidade

      Não sei se Jair Bolsonaro leu algum livro completo na vida, salvo, quem sabe, as memórias do famigerado Brilhante Ustra, o torturador de estimação do regime de 1964. Em todo caso, penso em Borges e Hölderlin quando reflito sobre o momento atual do presidente da República. O argentino Borges imortalizou a ideia de ruínas circulas. O poeta alemão Hölderlin disse em versos algo que cabe perfeitamente nestes tempos de twitter: “Onde há perigo, cresce também O que salva”. É uma versão lírica do trivial “o que não mata, fortalece”, que também pode ser uma tirada erudita do colossal Nietzsche. Bolsonaro começa a se alimentar do que poderia tê-lo matado politicamente e a tirar proveito das suas ruínas circulares.

      A pandemia poderia ter destruído o governo de Bolsonaro. Ele chegou a declarar o medo de ver seu mandato engolido pelo vírus. Ou pelas suas consequências no campo econômico. Obrigado a conceder um auxílio emergencial aos necessitados, que o parlamento tornou mais generoso, o capitão começa a ganhar terreno entre os mais pobres, graças justamente a esse benefício que hesitou em oferecer. Para passar o remédio “amargo”, teve de fazer o seu ministro da Economia, o inoxidável Paulo Guedes, chamado pelo humorista José Simão de Imposto Ipiranga, enfiar a viola no saco por algum tempo. Guedes só saiu da quarentena para lutar pela sua obsessão maior, o retorno da CPMF.

      Durante boa parte do seu governo, Bolsonaro divertiu-se fazendo provocações e comportando-se como um paquiderme numa loja de cristais ou de copos de vidro de massa de tomate. O ponto alto do seu dia parecia ser o do encontro com jornalistas e apoiadores no puxadinho da frente do Alvorada. Ali, ele se deleitava e entrava nas manchetes da odiada mídia. Acossado, porém, pelas investigações que cercam o seu filho 01, a respeito de uma “rachadinha” – que também pode ser chamada de tomar dinheiro dos assessores parlamentares – comandada pelo valete Queiroz, o presidente foi obrigado a diminuir o tom de voz e a ser paz e amor. Infectado pelo coronavírus, teve de enfrentar um período de reclusão. Tudo isso lhe fez muito bem. Quanto menos Bolsonaro fala, mais ele se fortalece fora da sua base ruidosa. Não que ele tenha deixado de falar. Isso não pertence à sua natureza loquaz. Nos dias de contenção, ele teve até um embate com uma ema sobre a cloroquina.

      No conto de Borges, de 1940, um personagem tenta criar outro num sonho. Outra noite, sonhei que um personagem meu sonhava comigo. No sonho, ele escrevia um romance no qual eu era personagem dele. Eu era um jornalista cuja tarefa consistia em analisar peripécias governamentais com bom humor e, para ser interessante, com um “regard décalé”, como dizem os franceses: um olhar deslocado, inusitado, de través. A cada final de capítulo, ele me dizia: “Seja realista”. Borges era bom de fórmulas. Como esta: Há derrotas que têm mais dignidade do que uma vitória”. Outros tempos. Agora, nesta fase neopolítica, só o resultado interessa. A regra é: se perder, denuncie uma fraude. Se ganhar, esqueça os meios e trabalhe pela reeleição. Uma coisa é certa: não se pode acusar o presidente de estar “mascarado”.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895