Borges inventou o gaúcho mitológico em Palomas

Borges inventou o gaúcho mitológico em Palomas

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Meu amigo Francisco Botelho é borgiano de carteirinha.

Ele me enviou elementos para demonstrar que o argentino Borges descobriu o "gaúcho" no Uruguai e no Rio Grande do Sul.

Em Santana do Livramento.

Eu acrescento por minha conta e risco: em Palomas.

Borges, como qualquer homem da campanha sabe, percebeu que termos como pampa e gaúcho são coisas de escritores, de gente da cidade. Assim como chimarrão e churrasco. Em Palomas, eu só ouvia falar em campanha, mate, assado e peão.

Borges ajudou a reinventar o gaúcho como mitologia universal.

Pode-se dizer que o gaúcho é uma invenção recente do tradicionalismo e da literatura.

Uma reconstrução universalizada pelo argentino Borges vendo matar um homem em Livramento.

Botelho tem certeza de que ele também andou por Bagé.

Estou mais convencido de que esteve numa cancha de carreira em Palomas.

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1) Entrevista de Borges à revista Status, São Paulo, agosto de 1984, p.21-9. Está em: Borges no Brasil, publicado pela Editora da Unesp.

Status: O senhor esteve muitas vezes no Brasil?

Borges: Muito poucas. Há 40 anos, passei dez dias em Santana do Livramento e lá vi matarem um homem, coisa que nunca tinha visto e que jamais veria depois. Naquela hora, isso não me impressionou muito, mas depois, sim. Mas me recordo sempre daquela região, dos gaúchos. O primeiro gaúcho que vi foi em Montevidéu. Eram tropeiros e traziam gados das estâncias para os currais e matadouros. Também nunca havia visto um gaúcho antes, pois aqui em Buenos Aires não havia. Talvez você não saiba, mas há duas palavras que não se usam nesta cidade e talvez tampouco nesta província. Uma é pampa, que só os literatos usam e que significa campo. E gaucho é um tratamento depreciativo; em vez disso, se diz peón ou paisano.Mas no Rio Grande do Sul, ao contrário, parece que todos são chamados de gaúchos, sejam médicos ou advogados, não é assim? Um tio meu, um historiador uruguaio, me disse uma vez que no Uruguai as pessoas mais velhas diziam "gauchos" ou "gaúchos", indistintamente, e que não só a palavra mas também o tipo, o personagem do gaúcho veio do Sul do Brasil. Lá havia gaúchos antes do que na Argentina, e creio que lá ainda existam, enquanto aqui acabaram. Claro, com tanta imigração italiana e espanhola na Argentina... pois o gaúcho tem sangue índio, é claro.

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2) Trecho de "Borges: Esplendor e Derrota", de María Esther Vázques, sobre a viagem de Borges ao norte do Uruguai e à fronteira com o Brasil

Seduziram-no o lugar; a fronteira, local de passagem para quem trafica ou foge; a vida que levavam os gaúchos (pronunciando a palavra à antiga maneira oriental quer dizer, à portuguesa) e as enchentes do rio Tacuarembó, que obrigava os passantes a aceitar a hospitalidade dos negociantes e dos donos de boliches

Os três [Borges, sua irmã Norah, seu cunhado Guilherme eram hóspedes do escritor uruguaio Enrique Amorim, casado com Esther Haedo, prima e companheira dos jogos infantis dos irmãos Borges. A casa chamava-se Nas Nuvens porque se erguia sobre uma colina que dominava a cidade; era branca e moderna, e os anfitriões amáveis, carinhosos e inteligentes.

Durante a estada (...) naqueles campos do noroeste uruguaio, Borges viveu experiências inéditas, oferecidas pela gauchada: violência cotidiana, um agressivo primitivismo anacrônico, que se advertia como disse o escritor: ‘nas cercas de pedra, no gado de chifres longos, nos adornos de prata para os cavalos, nos gaúchos barbudos; os palanques, os avestruzes, tudo era tão primitivo, inclusive tão bárbaro, que a viagem se converteu mais numa viagem ao passado do que numa viagem através do espaço’.

Naqueles dias a fronteira entre o Uruguai e o Brasil, perto do campo de Amorim, existia, salvo por alguns acidentes naturais, somente nos mapas. A cidade de Rivera se confundia com a brasileira de Santa Anna (sic) do Livramento; a fronteira era uma longa avenida aberta sem nenhum posto de aduana, igual à cidade do Chuí. Contrabandeava-se tudo, em especial gado. A vida própria e a alheia valiam tão pouco que se matava por uma irritação casual e momentânea; às vezes por menos. Borges só tinha observado este tipo de vida nos romances e nos filmes americanos de faroeste. Assim ele e Amorim viram num café de Santa Anna matar a um homem. Em uma mesa estava sentado, bebendo, o capanga (guarda-costas) de um homem importante. Um infeliz bêbado, dizendo inconveniências dele se aproximou demasiado e o outro, sem sair do lugar, tirou o revólver e o matou com dois balaços. No dia seguinte, o assassino, intocável para a justiça, estava novamente no café jogando cartas.

Também em Santa Anna e por intermédio de Amorim conheceu Borges um fazendeiro brasileiro. Acompanhava-o um negro gigantesco que levava à mostra uns revólveres muito grandes; o senhor, sem dissimular seu orgulho, apresentou-o dizendo: ‘Meu capanga!’, depois explicaram a Borges que isso indicava a importância e riqueza do indivíduo.

O ato de violência que presenciou alimentou de tal modo a imaginação de Borges, que pelo menos cinco contos seus, escritos anos depois, tiveram relação com este fato. (...)

Uma menção daquelas experiências de Salto aparece em ‘Tlön, Uqbar, Orbis Tertius’, em ‘A forma da Espada’ e em ‘O Morto’. Nesse último Otálora, um guapo argentino transforma - se no capanga de um contrabandista. Borges, como todos os escritores, buscou nas suas vivências, no seu passado, na gente que o rodeava, temas e personagens. Otálora era um antigo sobrenome de família e O Suspiro,lugar onde transcorre a ação de ‘O Morto’, era o nome do rancho, no qual passaram, ele e Amorim, uma noite. Em ‘A Outra Morte’ reaparece o homem primitivo e seus sentimentos. E por último, em ‘O Sul’, Juan Dalhmann protagoniza o assassinato do infeliz bêbado nas mãos do capanga. Agora o duelo se desenrola ao inverso e é a faca, mas o atroz pesadelo continua.

Nunca uma visita tão breve (é provável que daquela vez não tenha chegado a duas semanas sua estada em Nas Nuvens) rendeu tantos frutos.

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3) Trecho do livro Borges, Biografia Verbal, de Roberto Alifano. Borges explica como lhe surgiu a ideia de escrever o conto El Muerto:

A história ocorreu-me numa viagem que fiz à fronteira do Uruguai e Brasil em 1934. Eu tinha viajado a Salto à estância de meu amigo Enrique Amorim e depois fomos àquele povoado de fronteira; lá vi matar a um homem perto de mim e esse fato me impressionou muito. Tudo o que vi naquela viagem era primitivo: os adornos dos cavalos, os gaúchos com suas barbas descuidadas, as cercas de pedra, os arreios, os avestruzes, o gado de chifres longos. Foi como uma viagem ao passado... Quanto aos nomes, Otálora é um antigo nome de família meu, o mesmo que Azevedo, porém com c espanhol em lugar do z português. Bandeira era o nome do jardineiro de Enrique Amorim; também sugere os bandeirantes, ou conquistadores portugueses, que alguma vez nomeia Camões nos seus Lusíadas.

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4) Entrevista de Borges a Cahiers de L’Herne

Em Sant’Anna do Livramento tive a oportunidade de ver matar a um homem. Encontrava-me em um café com Amorim e numa mesa próxima a nós estava sentado um guarda-costas de uma pessoa muito importante, um capanga. Um bêbado dele se aproximou demasiado, e aí então, o capanga lhe disparou dois balaços. Na manhã seguinte o mencionado capanga estava no mesmo café bebendo um trago. Tudo tinha acontecido junto a nossa mesa, mas o que digo agora é o que me disseram posteriormente e esssa lembrança é para mim mais clara que a realidade. Só vi um homem em pé e só ouvi o ruído dos disparos.

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5) Trecho de uma entrevista de Borges, em "Borges, sus dias y su tiempo", de María Esther Vázques. Ainda sobre a viagem à fronteira do Uruguai com o Brasil.

Eu continuo pensando isso. Além disso, Amorim está muito mais perto dos paisanos e dos gaúchos do que Lugones. Lembro que estive com Amorim perto da fronteira uruguaia com o Brasil. Fomos a umas carreiras e eu vi duzentos ou trezentos homens endomingados para as carreiras. Então, eu, como portenho, disse ingenuamente a Amorim: “Puxa! que é isto?! Duzentos gaúchos!” Palavra que no campo também não teriam usado, teriam dito paisanos ou peões. E aí já se via o homem de letras, no pior sentido da palavra. E então Amorim me olhou com certa matreirice de homem do campo e me disse: “Mas ver duzentos peões aqui e assombrar-se é como se assombrar de ver em Buenos Aires duzentos empregados de Gath y Chavez (Borges ri sonoramente)”.

 

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