Borges, Schopenhauer e a leitura

Borges, Schopenhauer e a leitura

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O escritor argentino Borges admirava o filósofo alemão Schopenhauer. Os dois foram grandes leitores. Dois homens muito diferentes e parecidos. Antagônicos e complementares. Borges tinha senso de humor. Schopenhauer era ranzinza. Eles escreveram bastante e também pensaram sobre os atos de escrever e de ler. Borges fez isso em Esse ofício do verso. Schopenhauer em A arte de escrever. Falei um pouco disso no sábado passado. Não disse tudo.

Borges considerava-se antes de tudo um leitor. O leitor só conheceria felicidade. O escritor escreveria o possível, não o pretendido. Schopenhauer entendia que ler demais era uma maneira de não precisar pensar nem de ter ideias próprias. Uma muleta para matar tempo. Schopenhauer aconselhava que só se escrevesse tendo algo a dizer. O sentido e a expressão eram importantes para ele. Borges, no que se refere à poesia, não considerava sentido e expressão importantes. Buscava a emoção estética. Afirmava que grandes metáforas podem não ter sentido. Schopenhauer queria clareza. Borges amava Joyce.

Há pontos em comum entre os dois. Schopenhauer condenava os disfarces de estilo e pregava a prática do estilo natural para quem pudesse disso não se envergonhar. Borges admitia ter-se disfarçado quando começou a escrever tentando ser um escritor de outro século com tons de latinista. Confessava também ter buscado ser um escritor sul-americano e ter floreado muito as suas frases. Forçando a modéstia, diante de um público de americanos, dizia ter conseguido umas quatro boas páginas à custa de volumes e volumes de erros.

Schopenhauer detestava afetações e chicoteava os grandes do século XIX. Uns escreviam, segundo ele, com frases curtas e cheias de ambiguidade para simular profundidade. Outros adoravam neologismos e citações obscuras. Outros ainda se compraziam em longas frases, no que chamava de estilo alemão, estilo pesado, recheadas de interpolações, de volteios e de hermetismos insuportáveis. De Hegel a Nietzsche ninguém escapava. O velho deliciosamente rabugento teria odiado James Joyce.

O escritor e o filósofo compreenderam muito bem os mecanismos de legitimação dos seus campos. Borges, que adorava uma pegadinha, relatou ter atribuído certas metáforas de sua lavra a sábios ou poetas antigos, inexistentes, para fazer cair o queixo dos amigos. Disso ele tirou uma lição: a contemporaneidade poda o valor. Schopenhauer, certamente por ser filósofo, acreditava no valor intrínseco das ideias e na originalidade do pensamento. Rechaçaria com certeza o sistema de teses, já praticado na sua época, que se alastrou sem parar, baseadas em citações e em legitimação pelas autoridades citadas. É um gênero. Tem suas marcas, métodos e troféus.

O argentino Borges, por ser escritor, sabia que a originalidade é um truque, uma intervenção, uma mudança de lugar, um desvio, um deslocamento, uma reinvenção. Ele sonhava com o retorno em força da poesia, inclusive da poesia épica. Foi bom poeta. Infelizmente o seu sonho dificilmente se realizará. A poesia hoje é arte bizarra. Os poetas são menosprezados, objetos de riso, vistos como velhos que feito adolescentes continuam a fazer rimas e versos. Michel Houellebecq se acha melhor poeta do que romancista, mas sabe que para se impor deve fazer prosa.

A poesia era o espírito de uma época. Surpreende a alguns que eu goste de escrever poesia. Faz parte do meu anacronismo. Toda poesia, mesmo a mais moderna, é lírica. Eis uma tese. Borges prescindia do sentido. Eu defendo uma poesia de descobrimento, de desvelamento, que traga algo à tona, uma pequena revelação, que destape, descubra, desoculte. Quantas vezes já falei disso? Perdi a conta. Crônica também é descobrimento: o cronista tira a máscara e desfila nu diante dos seus velhos leitores.

 

Imagens emprestadas

 

Não é todo dia que vemos desta grua

Duas rosas vermelhas sangrando a lua

Cortada por esta faca sobre a mesa

Com a sua virgindade azul-turquesa

 

Quantas vezes já se quebrou a moldura,

Essa vela acesa na chama da demência

Onde choram cavaleiros da inclemência,

Para se invadir a solidão da pintura?

 

Estrela esquiva do cavalo negro

Ópio de cristais quase perfeitos

Vagos jardins de céus rarefeitos

 

Tudo se reflete na parede da história

Esse vasto painel da perdida memória

Molhando a terra com sangue de rosas.

 

Rosas metálicas da lavra de Mc Bangu.

 

Pirataria

 

Poetas desde sempre cantam a lua

Porque sabem dessa crueldade nua

Que é compor com as mãos vazias

 

Poetas roubam imagens da lua

Porque sabem que qualquer rua

É milha que se tem de percorrer

Antes de ver o sol e de morrer

 

Poetas repetem palavras e imagens

Saqueiam, matam, aram terra alheia

Porque sabem que a arte é uma veia

Onde se injeta o sangue dos piratas

 

Poetas usam palavras corriqueiras

Porque têm as certezas derradeiras

De que a morte é uma musa vazia.

Musa que tira tudo e cobra caro.

 

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