Caderno de Sábado: contra o ódio

Caderno de Sábado: contra o ódio

publicidade



Em tempos de ódio

 

Michel MAFFESOLI

 

 

Há uma relação entre a arte de compreender e aquela de tornar compreensível as coisas da vida. Essas coisas são o que são. E é bastante simples pensar que somos nós que as criamos. Convém, de fato, saber se liberar da opinião dominante, do que, desde sempre, nomeia-se doxa, para pensar, o mais justamente possível, aquilo que existe. Não é fácil, pois o que Durkheim nomeava “conformismo lógico” é o pensamento natural de toda vida em sociedade. Sob esse aspecto, deixemos de falar em pensamento único, pois o pensamento não está presente. Seria mais justo nomear “prato único” o que tende a suscitar lassidão e até mesmo indigestão.

Na verdade, para retomar uma imagem de Nietzsche, esta secreção de “moralina” traduz, simplesmente, a defasagem das elites sociais em face da verdadeira vida. Ou ainda o fato de que esta, em nome de um princípio de realidade (político, econômico, social) bem raquítico, seja abstraída de um real distintamente mais complexo e mais rico. Real em que as paixões, as emoções comuns desempenham papel inegável. Real em que o lúdico, o festivo e o onírico não podem ser confinados atrás do muro da vida privada, ou limitados ao famoso “1% cultural”, mas contaminam, o desenvolvimento tecnológico ajudando, o conjunto da vida social.

É tal defasagem que permite compreender esta surpreendente inversão dos valores, em que o “cogito ergo sum” cartesiano torna-se um deliquescente “ordi ergo sum”, odeio logo existo. Quando a sociedade oficiosa não é mais representada pela sociedade oficial, esta tende a se alterar e a exprimir seus maus humores. Não é essa a definição dos velhos caquéticos que, no declínio da existência, são impotentes para perceber a virilidade inesgotável da vida em seu perpétuo recomeço?

Assim, para aqueles que, além ou aquém da postura catastrófica que fica bem ostentar, querem estar atentos ao vitalismo dos costumes atuais, convém compreender a forma interior que os forja. Existe um princípio que assegura a coerência profunda e obstinada. Princípio que regula a ação e delimita o imaginário que caracteriza o “estar-junto”. O discernimento é o fundamento dessa virtú, tal como Maquiavel fala dela, e que, longe de sder rançosa, assegura no longo prazo resistência e solidez ao princípio essencial da sociedade: o viver-junto. Instinto gregário que é um constante motor de nossa espécie animal. Sempre foi preciso ter “o odor da matilha” para participar da vida comum. Nem que seja para permitir ao político julgar e agir, é preciso primeiro, fiel tanto quanto possível à neutralidade axiológica, fotografar a complexidade do real. Apresentar o mundo tal como ele é.

É tal postura intelectual que enfatiza o questionamento, a problemática (enquanto conjunto de problemas) mais que as soluções prontas, próprias das certezas dogmáticas, que se deve adotar. É esta atitude, em sintonia com a inquietude existencial, que, além das fáceis, mas seguras convicções, permite sentir bater a impulsão da vida e identificar as linhas de força da sociedade contemporânea, na qual o “politeísmo dos valores”, o policulturalismo e as identificações múltiplas parecem predominar. É essa “ruptura” do indivíduo em pessoa plural, essa fragmentação das instituições homogêneas em tribos heterogêneas, de uma República una e indivisível num mosaico mais ou menos coerente de comunidades, que deve nos incitar a um caminho de pensamento audacioso.

Lembremos que a moral que se elabora simultaneamente ao universalismo da filosofia das Luzes, a partir do século XVIII, se quer geral, aplicável em todos os lugares, e em todos os tempos. É esse universalismo que é fundamento mesmo de todos os nossos livros de edificação, exortação, incitação. Já a ética, que se confunde frequentemente com a moral, é ligada a um lugar e à comunidade que nele vive. Esse “território” pode ser real ou simbólico (virtual), a exemplo dos “sítios” comunitários na Internet. A ética é particular. Em oposição a uma moral una, as éticas são estruturalmente plurais, o que vai colocar o problema de seu ajustamento.

A deontologia põe em jogo os instintos de sobrevivência. Consiste em agir, sem consideração do bem e do mal, como se “deve fazê-lo”, como convém fazê-lo em função da situação presente. É quando há confusão das palavras que as coisas e os sentimentos tendem igualmente a se obscurecer. Daí a necessidade de sair da “armadilha semântica” que utiliza uma palavra pela outra. Para dizer de modo mais familiar, é necessário parar de “tomar alhos por bugalhos”. Quando uma palavra não está mais em sintonia com aquilo que é vivido, torna-se dogmática. Sabe-se, de longa data, que “o pássaro de Minerva só alça seu voo à noite” (Hegel). É, de fato, comum não ver aquilo que chegou já há muito tempo. Nessa defasagem se apoia o desaparecimento da “competência narrativa”, especificidade das elites modernas.

A ética exprime a substância mesma do viver-junto popular. Não se trata mais aqui do “espírito aprendido” que, simultaneamente ao racionalismo da filosofia iluminista, vai considerar que tudo se pode aprender. Que se pode educar o indivíduo em particular, o povo em geral. Que se pode “arrastá-los” para o bem e o bom. Pretensão ou corajosa ambição que tem caracterizado a modernidade e tem sido o fundamento mesmo da ideia do contrato social: “o estar-junto” é estruturalmente racional, é o espírito humano que, atravessando de um lado a outro, o constrói.

No fundamento do poder racional existe a potência emocional. Por mais paradoxal que isso possa parecer, o retorno da ética é, se se está de acordo com a palavra em seu sentido pleno, uma verdadeira “inovação”, a saber, aquilo que inventa a vida, fazendo vir à luz (in venire) aquilo que aí está enraizado desde sempre, o que permite pensar o atual a partir do substancial. O que, além dos acontecimentos próprios da política ou da moral, sublinha um advento que não é senão a ilustração do imemorial. Ao passo que o acontecimento exprime uma história, coletiva, que se pode sempre dominar, o advento remete a um destino ao qual convém se acomodar.

É tudo isso que pode permitir compreender o temor habitual da intelligentsia “esclarecida” diante daquilo que foi a filosofia da vida, aquela que, de Nietzsche a Bergson, enfatizou a empatia, a intuição, a prevalência dos afetos e diversas manifestações das paixões comuns, temor algo defasado quando se veem, na vida cotidiana, as múltiplas manifestações de um emocional cada vez mais invasivo.

A ética assim compreendida está longe de uma moral transcendente, que espera um mundo futuro e baseia-se num valor único. Prevalece é o fato de viver junto experiências coletivas, de “vibrar junto”. É o que os sociólogos chamam de empatia ou sintonia. Expressões que traduzem, além do isolamento na consciência individual, a pulsão animal de “romper-se”, ou seja, de participar magicamente, misticamente, daquilo que Durkheim chamava de “efervescências comunitárias”.

Pode-se, nesse sentido, falar de uma ética da estética, de um cimento a partir das emoções ou de paixões compartilhadas, tanto é verdade que a empatia ou a sintonia se encontram na multiplicidade dos fenômenos festivos, das ocasiões lúdicas e outras fantasias coletivas das quais a atualidade dá exemplos em abundância. Ética e estética! Alguns espíritos rabugentos não deixaram de atacar o surgimento de um Homo festivus. Notemos simplesmente que se o Homo sapiens esteve no fundamento do progressismo ocidental, o Homo ludens enfatiza uma concepção mais complexa da humanidade, aquela da “progressividade”, que implica a contribuição do passado e da tradição. Enfim, formas arcaicas, ou seja, originais, de todo viver-junto. É assim que se pode compreender este inegável hedonismo popular, que se exprime, melhor, numa ética plena de bom senso: a vida talvez não valha nada, mas nada vale a vida. O que traduz, ao mesmo tempo, uma clarividência respeitável, mas, do mesmo modo, mais profundamente, o fato de que o povo é artista: criador de sua vida, “participando” desta criação da vida em geral.

A República não é una e indivisível, ou seja, não se baseia num valor único moldado pelo espírito da seriedade. A Res publica é um mosaico plural, em que os múltiplos valores, dentre os quais o do prazer de ser, podem ocupar um lugar de escolha. A ética é a expressão de uma sociedade aberta, policultural, relativista. Sociedade na qual o choque dos valores é garantia de uma harmonia conflituosa. Viver neste mundo é se ajustar a ele, e não forçá-lo, com a brutalidade costumeira, ao progressismo ocidental. Para parafrasear Aristóteles, a “virtude ética” deriva do hábito (ethos), do qual ela tira seu nome. Ou seja, de uma atitude feita com prudência em relação a um lugar que se compartilha com os outros. É isso a ecosofia: a sabedoria coletiva em relação à casa comum que se tem a preservar.

Essa função de “ligação” da ética, enraizada, portanto dinâmica, pode permitir compreender que, além dos poderes efêmeros, sejam eles econômicos, políticos, sociais ou simbólicos, existe uma potência de base que perdura no tempo, e isso porque está enraizada no tempo imemorial da tradição. A potência ética sabe, desse “saber incorporado” do qual se tratou, que o poder moral é provisório: et illud transit, isso também passará. Certa sociologia soube discernir, em termos muito simples, que o instituído só pode perdurar se enxertado no instituinte, habitado por ele.

Depois do discurso estereotipado da política, é a moral que toma os mesmos atalhos, comprazendo-se com algumas fórmulas estabelecidas, repetidas, de maneira lancinante, com ar entendido, mas das quais se pode estar seguro que não acarretam consequência, tanto o povo as considera insignificantes. Parecer mais adequado, contra a urgência abstrata e a indignação desencarnada, o afastamento preguiçoso de um Sócrates, que sabe com seu sorriso irônico corresponder ao vivido da vida no que ela tem de singular e de geral. Eis exatamente a aposta do “situacionismo” deontológico: lembrar que, em oposição àquilo que é o fundamento das diversas injunções morais, o ser, em suas modalidades individuais ou coletivas, não se reduz à consciência. O ser, em sua inteireza, é feito de instintos, afetos, sentidos.

Não uma experiência individual da qual cada um é responsável e responsabilizado, mas a experiência comum que se enraíza profundamente e serve de terreno à singularidade e às situações factuais. As deontologias, de maneira paradoxal, sem serem asseguradas por uma consciência soberana e estando submetidas ao sabor dos acontecimentos, aos riscos da existência cotidiana, tiram sua segurança dos engendramentos sucessivos que fazem com que se realize não a partir de si mesmo, mas graças a outro anterior. Os diversos fanatismos, em seu aspecto sanguinário, apenas confirmam que a tolerância está na ordem do dia.

O mosaico sendo a experiência acabada de uma coerência estrutural a partir da multiplicidade. É necessário tudo para fazer um mundo, lembra a sabedoria popular. E concretamente, na vida de todos os dias, além do a priori intelectual, cada um se adapta à diferença e se aproveita dela. Tal pode ser a lição das deontologias: além daquilo que é dito, de maneira dogmática, no vivido empírico a diferença enriquece. As práticas cotidianas, por mais falsas que possam parecer, por mais falsas que sejam, são progressivamente integradas, canalizadas, banalizadas.

 

Na panóplia de instrumentos propostos à nossa espécie animal para fundar e legitimar o viver-junto, existem, conforme as épocas, meios de ação muito diferenciados. Não é o caso de estabelecer entre eles uma hierarquia precisa ou de emitir um julgamento sobre o que representam. Basta reparar o meio ou modo operatório que é mais pertinente num momento. É assim que a moral se baseia numa lógica do “dever ser”. Privilegiando os valores abstratos, eternos, aplicáveis em todos os lugares e em todos os tempos, deve ensinar, de maneira universal, o que é justo. A ética se contenta com a justeza. A partir de um enraizamento num dado lugar, sítio real e virtual (o bairro ou a Internet), se aplica em favorecer o “poder ser”. Ela é particular, local e especialmente visível na multiplicidade dos “ajuntamentos” pós-modernos onde o lúdico e o festivo ocupam um lugar de escolha.

Quanto às deontologias, elas enfatizam a importância das situações vividas no dia a dia. “Dever ser”, “poder ser”, “querer ser”, tais são as modalidades do vínculo cívico. É necessário saber encontrar aquela que está em congruência com o tempo, encontrar as palavras que permitem remediar os males do momento. Sem o que nossa amável animalidade corre o risco de acabar em pura animalidade. No theatrum mundi (teatro do mundo), é preciso não se enganar de papel, mas agir com discernimento para destacar, em função das formas deixadas pela tradição, aquilo que é verdadeiramente prospectivo. Não é assim que convém entender a advertência de Léon Bloy: “O profeta é aquele que se lembra do futuro”?

Michel Maffesoli,

Membro do Instituto Universitário da França, autor de “A transfiguração do político: a tribalização do mundo” (Sulina)

  • Texto traduzido por Simone Ceré


 

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895