Caderno de Sábado: o homem do ano

Caderno de Sábado: o homem do ano

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Estamos em 2116. Os dias sucedem-se alternando reflexos irisados nas águas que ameaçam parte do planeta. Os crepúsculos têm uma beleza incandescente e melancólica. As barras alaranjadas que se enfileiram no horizonte alteram tons beirando o vermelho fogo com ligeiras oscilações azuladas. Muito cedo, o frescor é sentido como um bálsamo. Cada vez mais, pessoas madrugam para experimentar essa sensação de prazer proporcionada por brisas que desaparecem em poucos minutos.

A temperatura média no planeta subiu dois graus nas últimas cinco décadas. A humanidade tenta se adaptar. Cidades litorâneas sofrem com o avanço do mar. A vida, apesar de tudo, segue. Pesquisadores da Universidade de Melbourne, na Austrália, decidiram, por sorteio, estudar o Brasil. A Austrália, nos últimos cem anos, consolidou sua tradição em estudos considerados exóticos. A cada ano um país é escolhido para ser objeto de um grande projeto de pesquisa transdisciplinar financiando pela Coreia do Norte, que abandonou o comunismo, adotou o capitalismo, investiu pesadamente em educação e tornou-se um polo de transdisciplinaridade segundo as ideias de Edgar Morin, pensador francês nascido em 1921 e cada vez mais lido por toda parte em dispositivos mentais que acessam bibliotecas imateriais.

Os critérios de objetividade e transparência adotados pelas universidades australianas obrigam que todas as decisões sejam tomadas por sorteio. Tudo que não possa ser decidido por meritocracia ou por audiência, vai a sorteio. Em caso de dúvida, até questões metodológicas devem ser sorteadas para evitar favorecimento a quem quer que seja. Depois de escolhido o país – no caso, o Brasil – foi definido o ano a ser investigado. Uma bolinha azul – as cores foram sorteadas previamente – indicou o que todos sonhavam: 2016. Exatamente cem anos antes. Certamente uma dessas manobras do destino, ainda que essa palavra esteja fora do uso. Mais uma intromissão do acaso com seu gosto, a exemplo dos jornalistas, pelas chamadas datas redondas.

Nada mais estudado do que o acaso. No futebol, esporte mais praticado no mundo atualmente, uma frase de um poeta brasileiro, falecido justamente em 2016, Ferreira Gullar, serviu de pista para grandes avanços científicos: “O sistema tático existe para tentar eliminar o acaso”. Poderosos computadores do tamanho de uma unha trabalham para a extinção total do imprevisto no esporte de maneira a consagrar definitivamente o planejamento. Os australianos sabem que, no Brasil, laboratórios resistem a essa perspectiva incontornável. Daí a alegria ao ver que a sorte lhes sorriu na loteria da pesquisa científica. Os brasileiros são vistos por muitos como uma espécie de tribo que ainda valoriza elementos estranhos como a sorte, o inesperado e o improviso.

Tudo se investiga. Nada escapa ao crivo da ciência. A racionalidade submete todas as manifestações do comportamento humano. Em outra universidade australiana, financiada pela Coreia do Sul, que se converteu em referência socialdemocrata, radicalizando o antigo modelo da Suécia, que se tornou neo-pós-liberal depois de uma crise, foi realizada uma impressionante pesquisa sobre datas redondas. As conclusões foram tão surpreendentes que garantiram um prêmio Nobel aos envolvidos. O Nobel, diga-se de passagem, mudou muito nas últimas décadas. O Brasil ganhou três na literatura: com uma estrela do rap, um letrista de funk e um expoente do sertanejo universitário de raiz.

Os pesquisadores da Universidade de Melbourne responsáveis pela pesquisa sobre o Brasil acabam de chegar em suas bicicletas voadoras, movidas a energia solar, para um encontro numa nuvem espessa onde discutirão detalhes da operação batizada de Lava Jato reloaded. Os encontros em nuvens viraram uma mania planetária nos últimos tempos. O acesso é fácil e o espaço garantido. Graças ao desenvolvimento tecnológico vertiginoso, é possível se instalar confortavelmente sobre nuvens, que funcionam como antigos sofás, só que conectadas ao universo. Depois que se resolveu, de resto, o problema das conexões, com a simbiose mental entre todos os homens habilitados pelos organismos legais aptos a aplicar testes de integridade, as comunicações ficaram muito mais fáceis. Todo homem pode se comunicar com quem quiser com tradução automática. Alguns ficam em silêncio.

A profissão de tradutor desapareceu. Em compensação, há muito emprego para especialistas em comida vegana. O grande problema é o excesso de tempo disponível. Cada pessoa recebe um salário mínimo governamental. A maioria não sabe o que fazer dos seus dias. Estuda-se reinventar alguma profissão do passado para ocupar quem já viu todos os filmes disponíveis. Pensou-se em criar cargos de atravessadores de rua para ajudar idosos – a expectativa média de vida é 112 anos –, mas ninguém se locomove, salvo para cuidar do corpo, com as próprias pernas.

Tudo se estuda. Os pesquisadores já sabem que, para ter acesso aos dados sobre o Brasil de 2016, terão de lidar com velhas tecnologias. Foram informados sobre plataformas, meios e suportes pré-históricos. A curiosidade é grande. Pode-se falar até em excitação generalizada.

­­– Hein, Peter, viu isto?

– Que é isso, cara?

– Chamava-se facebook. Era muito utilizado no Brasil em 2016.

– Para que servia?

– Ainda não sabemos bem. Mas parece uma ótima fonte de informações sobre o passado embora parte do material não faça sentido. Nosso departamento de gastronomia vai se fartar, pois nesse facebook cada usuário postava imagens diárias de tudo o que comia ou bebia.

– Que loucura!

– Localizamos centenas de ferramentas desse tipo. Não dá para saber exatamente a diferença entre eles. Uma hipótese é que tivessem um valor simbólico de distinção para separar e classificar os usuários.

– Que coisa mais antiga.

– Olhem este, guris?

(Nota do editor: filólogos estudam a migração desse termo do Rio Grande do Sul para a Austrália por volta 2053 por influência de um livro ou de uma canção intitulada “guris fractais em dispersão”)

– Qual, Brother?

– Este aqui. Chamavam de youtube.

– Que bizarro.

– Foi febre em determinada época no mundo. Os brasileiros adoravam. Os praticantes eram chamados de youtubers. Tem muita criança e muito adolescente. E muitos marmanjos falando e agindo como crianças.

– Deliciosamente esquisito, hein!?

– Fizemos uma nuvem com os termos mais usados na época. Deu Uber (um sistema de táxi amador apresentado como carona profissional), Netflix (uma plataforma de exibição de telenovelas chamadas de séries), violência, Lava Jato, delação premiada, luladrão, #foratemer, sertanejo universitário, corrupção, Maiara e Maraisa e Selena Gomes.

– De Maiara e Maraisa acho que já ouvi falar. Do resto, nunca.

*

Depois de algumas centenas de reuniões preparatórias em diferentes nuvens, os australianos estão prontos para pesquisar o ano de 2016 no Brasil. Na verdade, baseados em pesquisas prévias, chegaram a algumas conclusões preliminares que vão balizar todo o processo investigativo:

– O ano de 2016 no Brasil foi trágico, Helen.

– Um ano político, Sarah.

– Um ano violento.

– Caótico.

– Devastador.

– Definidor do que viria depois.

– Como assim, Peter?

– Ora, Meg, destituíram a presidente da República.

– Uau! Um golpe?

– Um impeachment.

– Impeachment ou golpe?

– É que precisamos saber. O vice-presidente assumiu.

– Ele conspirou contra a presidente?

– Há quem diga que sim?Parece que apoiouo.esal, mesmo pe?ativors. onomia vai se fartar, pois nesse facebook cada ususperado e o improviso.esal, mesmo p

– A mídia não denunciou?

– Parece que apoiou.

– Uau!

– Não podemos tirar conclusões precipitadas.

– Que mais?

– Afastaram o presidente da Câmara dos Deputados do cargo.

– Quem fez isso? Seus pares?

– A Suprema Corte. Mas, embora estivesse denunciado desde muito tempo, só foi afastado depois que ele presidiu o impeachment da presidente.

– Uau! Uau!

– Ele voltou?

– Foi cassado pelos pares e preso.

– Uau! Uau! Uau!

– Pare de latir, Meg.

– Estou nervosa. Nunca tinha ouvido falar de algo assim.

– Afastaram o presidente do Senado.

– Quem? A Suprema Corte?

– Sim. Um ministro da Corte.

– Uau!

– O cara, com apoio da mesa diretora do Senado, não acatou a decisão.

– Uau! Uau! Uau! Para essa nuvem que eu quero descer.

– Estabeleceu-se uma crise entre os poderes.

– Que país é esse!?

– O Brasil, Meg.

– Tô sabendo. Você já morou em Portugal?

– Por que, Meg?

– Nada, não, continue.

– O pleno da Suprema Corte pronunciou-se.

– Confirmou a decisão do ministro que deu a liminar, claro!

– Sim e não.

– Você precisa passar um tempo em Portugal, Peter.

– Como assim?

– Nada. Explica essa ronha. Sim ou não?

– Sim. Tirou o cara da linha sucessória da presidência da República como pretendia o ministro que deu a liminar. Mas o manteve na presidência do Senado como queriam o governo e os seus aliados.

– Me tira os tubos, cara. Nunca imaginei algo assim entre nós. A atribuição é do cargo, não da pessoa. Ou não era assim em 2016?

– Precisamos esclarecer isso com nossas pesquisas.

– Se um réu não podia ser presidente da República, querido Peter, como poderia ser presidente do Senado? O Senado não era republicano? Nada disso me parece muito lógico ou profundamente democrático! Tô passada.

– Você é de origem portuguesa, Meg?

– Olha a discriminação.

– Acho que, por hipótese, entendi o princípio da coisa, Meg: constitucional era o que parecesse, aos olhos dos ministros da Suprema Corte, mais conveniente para acalmar os ânimos a cada momento.

– Uau!

– Sem mais latidos, por favor.

*

Em doze meses de pesquisa, sem qualquer deslocamento ao Brasil, coisa que antigamente se fazia pelo simples gosto de viajar, num culto ao presencial que se confundia com o turismo, os pesquisadores devassaram o Brasil de 2016. Acumularam montanhas de dados sobre corrupção. Criaram pastas só para o desempenho de Sérgio Moro. Formaram uma força-tarefa exclusiva para a Lava Jato. Passaram um mês analisando o PT e dois meses estudando um personagem que lhes pareceu fascinantemente contraditório: Lula. Fizeram de tudo para elucidar casos como o do tríplex de Guarujá e do sítio de Atibaia. Empacaram nas disputas políticas nas redes sociais. Gastaram horas avaliando uma foto de Sérgio Moro com o senador tucano Aécio Neves. Na imagem, os dois conversam ao pé do ouvido em tom de confidência e galhofa.

– O que esse documento prova, Peter?

– Não sei, Meg.

– Para uns, que Sergio Moro era tucano.

– Será? Uma foto fora de contexto pode levar a conclusões equivocadas.

– Ainda não resolvemos esse problema antigo, Meg. Como crer nos documentos? Antigamente, os chamados positivistas acreditavam piamente na verdade dos documentos. Falavam coisas assim: “uma foto não mente”. Ou “uma foto diz mais do que mil palavras”. Não é deliciosamente ingênuo? Os antipositivistas denunciaram essa ilusão de verdade. Adotaram o posicionamento oposto. Tudo dependia do ponto de vista de cada um. Acabou-se a verdade. Aí eles ficaram no mato sem cachorro.

– No mato sem cachorro?

– Era uma expressão muito usada no extremo sul do Brasil em 2016.

– Gostei de outra: ovelha não é pra mato.

– Claro que não, Meg. Tivemos muitas ovelhas na Austrália.

– Ora, pois, pois...

Os pesquisadores ficaram impressionados com as reformas do governo Temer. A reforma da Previdência provocou sucessivas reuniões em diferentes nuvens. Dados foram cruzados incansavelmente pelo grupo.

– Qual era a expectativa média de vida dos brasileiros em 2016?

– Deixa eu ver aqui: 74 anos, Paul. Mas no Nordeste, região pobre do país, andava pelos 66 anos. Colhi esses dados no Google, sabe?

– Google?No mato sem cachorro?” cachorro”busca muito usada na se fartar, pois nesse facebook cada ususperado e o improviso.esal, mesmo p

– Era uma ferramenta primitiva de busca muito usada na época.

– Chama a atenção esse dado. Não parece confiável. Como se poderia propor 49 anos de contribuição para acesso à aposentadoria integral a pessoas com expectativa média de vida de 66 anos? Seria preciso trabalhar desde os 16 anos, desde criança, até a morte. Que mundo era esse? Tem algo de hediondo nisso. Sei lá, uma coisa meio perversa.

– Pelo que conseguimos concluir era muito perverso: a maioria da população era não branca, mas os brancos tinham os maiores privilégios. Grande parte tinha pouco. Uma pequena parte tinha muito. O sistema favorecia a reprodução dessa desigualdade. O país tinha a quarta população carcerária do mundo, em prisões superlotadas, e dizia-se que havia impunidade. A violência não parava de aumentar, mas era considerado esquerdismo infantil associá-la ao grau de desigualdade. Os ricos viviam em condomínios fortificados. Os pobres espalhavam-se em aglomerados urbanos precários chamados de favelas.

– Que coisa! Um case esse Brasil de 2016.

– Dizer que isso foi há apenas cem anos. Ontem!

– E a população não se revoltava?

– Em 2016, aconteceram grandes manifestações contra a corrupção. A classe média e a classe alta foram às ruas protestar. Em torno de 2% da população total do país vestiu verde e amarelo para se manifestar.

– E contra a desigualdade?

– Nada.

– Contra a reforma da Previdência?

– Até o final de 2016, nada.

– Exótico!

– Como um dos nossos cangurus para eles.

*

Em 19 de dezembro de 2116 a equipe de pesquisa apresentou o seu relatório. Foi preparada uma festa com vários tipos de suco. Pensou-se em brindar com caipirinha, uma bebida típica dos brasileiros do século 21. A ideia não passou. Quase não há mais quem beba álcool. A presidente do Brasil, uma índia nascida na interior da Amazônia, não pode comparecer, mas enviou uma mensagem de agradecimento. O relatório, de 4.832 páginas, revelou-se um denso e detalhado estudo sobre o Brasil de 2016. Ao final, para corar um trabalho exaustivo, fez-se uma brincadeira. Escolheu-se o brasileiro do 2016 ou, como se dizia, o homem do ano. O nome certamente surpreenderá os leitores.

Antes de anunciá-lo, cabe colar aqui um parágrafo do magistral relatório dos pesquisadores australianos: “País continental, o Brasil chamava a atenção por seus contrastes. Rico, mas pobre, jovem, mas velho, mestiço e multicultural, mas dominado por homens brancos, orgulhoso da sua cordialidade e descontração, mas profundamente hierárquico, inclusivo por inclinação ou representação, mas excludente por organização, dominado pela sensação de impunidade, mas extremamente punitivista em relação aos setores mais pobres da população, informal no trato cotidiano, mas bacharelesco no linguajar da coisa pública, generoso no imaginário, mas predador nas relações de classe, com destaque para um dispositivo chamado auxílio-moradia pelo qual magistrados detentores de altos salários e várias residências recebiam um auxílio-moradia equivalente a seis salários mínimos”.

Seria fastidioso, apesar da justeza do texto, prosseguir. A observação final merece ser citada: “Se o Brasil tomar as medidas certas, no sentido da diminuição da desigualdade e da desconcentração de renda, poderá em cem anos superar o gap abissal em relação aos países mais avançados do mundo conforme os índices de desenvolvimento humano”.

Uma nota de rodapé dá o que pensar: “Embora o escopo deste estudo cinja-se ao ano de 2016, cabe adiantar que o Brasil não conseguiu no século decorrido até hoje superar seus problemas. No momento, discute-se um ajuste fiscal para tentar colocar a economia em dia. O governo propõe um congelamento de gastos públicos pelos próximos cem anos”.

A tarde caía como um melancólico viaduto (os pesquisadores ficaram apaixonados por Elis Regina no ano de Maiara e Maraisa) sobre a baía de Port Phillip quando o relatório terminou de ser apresentado em tom de missão cumprida. Meg piscou acionando um dispositivo musical que elevou no ar a voz filosófica de Belchior cantando “como nossos país”.

– Ninguém achou Belchior naquele ano – suspirou ela.

Carros voadores não pilotados passavam pelos edifícios de vidro translúcidos levando cães de estimação. Letreiros luminosos no ar anunciavam os últimos lugares para uma viagem espacial de sete dias. Peter, com voz embargada, declinou o nome do brasileiro de 2016.

– O Zé.

– Zé!?

– O Zé do Povo.

– Mas por quê?

– Ele sobreviveu.

 

 

 

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