Carta a Habermas

Carta a Habermas

Perguntas a um sábio ancião

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Caro mestre Habermas:

Eu poderia tentar conseguir o seu e-mail para uma entrevista. Sei que, mesmo na sua idade, 92 anos, o e-mail está quase ultrapassado. Mas todo mundo tem um. Em todo caso, preferi escrever-lhe esta carta. O senhor esteve em Porto Alegre, em 1989, e foi entrevistado por mim. Há quem escreva para mortos. Eu continuo fiel aos vivos. Edgar Morin fará cem anos em julho. Continua ativo no twitter. Assusta-nos, às vezes, com suas postagens sobre a aproximação da barca de Caronte. Em nosso encontro de duas décadas atrás, fiz-lhe as perguntas que me preocupavam como jovem jornalista. Por exemplo:

– Uma prática social baseada em sua teoria da ação comunicativa é possível no Terceiro Mundo? Que base haveria para que se realizasse um consenso a partir de um jogo argumentativo? Para o senhor, que disse a Perry Andersen, em entrevista, que sua perspectiva é eurocêntrica, que sentido faz uma filosofia social que expurga uma enorme parcela da população mundial?

      Veja que eu usava termos hoje desaparecidos como “terceiro mundo”. A sua resposta foi generosa e longa, ainda mais com tradução:

Habermas – “Em relação ao eurocentrismo quero dizer que efetivamente a Perry Andersen manifestei a realidade pessoal do meu interesse pelo Terceiro Mundo, que está baseada apenas em leitura de jornais e como homem contemporâneo. Não me debrucei sobre os problemas como cientista. Seria absurdo afirmar que uma teoria que somente espelha a perspectiva dos países desenvolvidos seria suficiente para enfocar as questões mais candentes do mercado mundial. Trata-se de uma limitação dos meus próprios interesses. Não chego à América Latina como um especialista em seus problemas. No meu conceito de ação comunicativa não se trata de um rousseauismo, de um utopismo e nada tem a ver com otimismo ou pessimismo. Trabalho com as bases da nossa comunicação cotidiana. Tento esclarecer pontos que não foram suficientemente explicados na tradição marxista nem na teoria crítica da sociedade.

Viso estabelecer um fundamento normativo que permita o exercício da crítica, sem o qual ele seria impossível. Marx operou com premissas procedentes da filosofia da História, que hoje não podemos aceitar sem mais nem menos. Busco as premissas dessa comunicação enquanto não se parte para o recurso da violência, manifesta ou camuflada. À medida que nos interessamos por fagulhas de racionalidade, que estão na própria comunicação, não estamos afirmando o governo da razão, mas estamos obtendo uma medida que nos permite analisar criticamente a realidade. No Rio de Janeiro, nenhuma criança chega à vida adulta sem que a mãe dê a ela determinadas condições e sem uma família em que ela cresça, e em meio aos vizinhos. Nessa família e com esses vizinhos existe o agir comunicativo. Do contrário, a criança não chegaria a completar um ano de idade. Isso independe de passar fome ou não.

A outra verdade é que não há miséria só nessas favelas. Mas também em Nova Iorque e outras partes do Primeiro Mundo. A violação dos direitos humanos faz parte do cotidiano nas sociedades desenvolvidas. A minha abordagem teórica não é uma visão otimista da vida boa, mas um instrumento de investigação.”

Racionalidade e atualidade –  Como passou o tempo! Escrevia-se “Nova Iorque”. Acreditava-se em racionalidade. Fiquei tão impactado com os seus livros que quis me dedicar à Esfera Pública. Escrevo-lhe para perguntar como o senhor vê a perspectiva pós-colonial? No Rio de Janeiro, crianças morrem de bala perdida. Nunca estivemos tão polarizados. Ainda há espaço para uma ação argumentativa capaz de produzir consenso e de consagrar o melhor argumento? Viajei bastante desde a nossa entrevista, estudei com grandes mestres, questionei grandes intelectuais. Agora, quase velho, estou aqui tentando saber o que sobrou das teorias da minha juventude. Sei que muitas vezes o acusaram de ingenuidade e até de idealismo. Não tem medo de ser cancelado por situar o seu “lugar de fala” com tanta franqueza?

      Ou já não pensa assim? Nunca deixei de acompanhar os seus escritos e entrevistas. Se escrevo é por acreditar que só as suas respostas diretas poderão me ajudar a compreender o momento que vivemos. Imagino algumas das suas respostas. Fiz, em Paris, o curso de Jacques Derrida, que não o poupava, mas não deixava de admirá-lo. O que resta, na sua opinião, daquelas utopias de um mundo melhor? Não falo, pois Morin me puxaria a orelha, de melhor dos mundos. Se puder me dar uma luz, ficarei eternamente agradecido. Li a sua entrevista para o jornal “Le Monde” depois do começo da pandemia do coronavírus. Continuo com muitas dúvidas. Sei que não se lembrará de mim. Isso não importa. Tome-me como um questionador potencial. Seria muito bom saber se tem acompanhado a situação brasileira. Gostei de ver que para o senhor “a solidariedade é a única cura”. Há, porém, cura para uma humanidade que não ousa quebrar patentes para escapar da tragédia? Com minha admiração e respeito. Um abraço caloroso em tempos sombrios.


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