Caso Lira Neto, ou Brasil, o país da indiferença e da impunidade

Caso Lira Neto, ou Brasil, o país da indiferença e da impunidade

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Sim, estou chocado com o que chamarei de Caso Lira Neto.

Fosse na França, país de grandes historiadores, seria um escândalo.

Se um jornalista, penetrando na campo da historiografia, dissesse ter descoberto documentos e informações inéditos sobre a Revolução de 1789 e alguém provasse imediatamente se tratar de material requentado, intelectuais marchariam de faca nos dentes para denunciar a fraude, a falsificação, a tentativa de manipulação mercantilista do passado e do presente.

Editora e mídia seria duramente atacadas.

Haveria manifestações de repúdio. Intelectuais se sentiriam ultrajados.

O caso Lira Neto, com sua biografia de Getúlio Vargas, é sintomático: explicita a ignorância e a má-fé de jornalistas, a conivência da mídia, a indiferença da academia, o conluio entre uma grande editora e certos veículos de comunicação.

Lira Neto poderia ter dito que abordou melhor tema, que explorou melhor a documentação, que interpretou melhor, mas não poderia ter dito que descobriu o discurso de formatura de Getúlio Vargas (abordado e citado antes por Fernando Jorge), que foi o primeiro a manusear o processo de um crime cometido pelos irmãos Vargas em Ouro Preto (amplamente citado por Augusto de Lima Júnior)  e que inocentou Getúlio de um crime cometido por um homônimo contra um índio (esclarecimento que se encontra no livro de Lutero Vargas, citado, entre outros, por mim). Essa tentativa de legitimação é um embuste, uma trapaça, um lance desonesto, uma atitude entre infantil e arrogante de alguém que parece apostar na impunidade e na certeza de que ganhará a disputa por ter a força midiática do seu lado, zombando dos pudores dos pesquisadores acadêmicos.

O caso do discurso de formatura foi plantado por Lira Neto na coluna de Lauro Jardim, na revista Veja. Fernando Jorge contestou imediatamente o ineditismo da descoberta enviando carta a Jardim. Foi ignorado.

Álvaro Larangeira publicou no Observatório de Imprensa artigo desmascarando as falsas descobertas de Lira.

Eu mesmo mostrei o ridículo desse procedimento (ver outros post neste blog).

Inútil. Repercussão zero.

A versão de Lira Neto se imporá.

O caso Lira Neto prova que a mídia produz fatos, manipula e impõe sua visão.

Demonstra o que Pierre Bourdieu e Serge Halimi denunciaram em pequenos livros que provocaram muito polêmica: o sistema de conivência no campo cultural entre editoras, mídia e certos autores em operações de interesse comercial.

O contra-argumento mais trivial a este tipo de crítica é: ressentimento, inveja.

Como disse Guy Debord, o espetáculo se apresenta como uma enorme positividade. É incriticável. Toda crítica é reduzida a uma confissão de fracasso. Escrevi um romance sobre Getúlio Vargas. Não estou em concorrência com Lira Neto.

Getúlio é objeto permanente de livros. Depois de meu romance, o historiador da USP Boris Fausto publicou uma boa biografia do maior político da história brasileira. Não se gabou de fazer descobertas sensacionalistas. Foi quase ignorado.

O caso Lira Neto deve ser estudado em Crítica de Mídia como o famoso Caso da Escola Base ou como o Caso Cachoeira - Policarpo Jr. São casos de incesto midiático, de precipitação e de falta de rigor no jornalismo.

O que chama mais a atenção, no entanto, é a indiferença. A mentira se impõe como verdade. O silêncio impera.

Admira-se no Brasil mais o sucesso do que a seriedade. Lira Neto, com seu golpe midiático, já conseguiu agendamento na mídia: um veículo segue o outro e tem-se a onipresença, o que cria sensação de importância e verdade.

Num país de cultura, o caso Lira Neto chamaria tanto a atenção quanto a confissão de Xuxa de que sofreu abuso sexual quando era criança. No Brasil, país de entretenimento, uma polêmica de intelectuais só arranca bocejos.

O compradismo impera: jornalistas com alguma grife emprestam seus nomes para legitimar a fraude.

Nenhum historiador europeu calaria diante deste blefe de Lira sobre o caso do homônimo: “O processo se referia a esse Getúlio como nascido em ano e município que não condiziam com os do ex-presidente. Pensei: ou está errado ou é outro”, disse Neto.

Após pesquisar as certidões de nascimento, descobriu que de fato havia, no Rio Grande do Sul, um segundo Getúlio Dorneles Vargas, homônimo ao presidente. “Era um erro histórico que estava sendo perpetuado”, concluiu Neto.

Em “Getúlio Vargas: a revolução inacabada”, como já escrevi, Lutero Vargas, no item “Os quatro crimes da Tribuna de Imprensa”, trata dos “quatro crimes de morte da vida pregressa de Getúlio Vargas”, conforme denúncia caluniosa de Carlos Lacerda em 10 de agosto de 1954. Diz: "O relatório foi apresentado em 15 de agosto de 1923; um dos assassinos chamava-se Getúlio Vargas e o outro Soriano Serra. Os dois foram presos em flagrante. O que tem Getúlio a ver com isso? Somente o nome”.

Por que estou repetindo isso?

Pelo espanto que me causa.

Os casos do discurso de formatura e do processo de Ouro Preto são ainda mais chocantes.

Entramos na era dos falsos biógrafos, os biógrafos jornalistas, marqueteiros, com grandes amizades na mídia, dispostos a tudo por uma manchete sensacional, prontos a requentar o passado e a esquentar o presente, certos de qualquer contestação irá para o ralo da história como uma marca de amargura. A biografia de Getúlio feita por Lira Neto é um epitáfio para a academia.

Também é a prova definitiva da morte da mídia de cultura no Brasil.

Finalmente a História transformou-se em mercadoria total e não é mais escrita pelos vencedores, salvo pelos vencedores atuais, aqueles que dominam a mídia. São Paulo terá, enfim, a biografia de Getúlio capaz de atender aos seus interesses.

A verdade histórica dobra-se diante da narrativa de mídia.

Lira Neto inaugura um novo tempo, o tempo da história documental como ficção da mídia.

A voz de Boris Fausto dizendo que a biografia de Lira Neto "não traz nenhuma grande novidade" já foi abafada pela potência da revista Veja assegurando que a esfinge foi, enfim, decifrada.

A legitimação não vem da academia, mas da mídia.

Na França, programas no estilo Jô Soares e Marília Gabriela mergulhariam no debate.

No Brasil, certamente levantarão a bola para que Lira Neto confirme sua falsificação.

Eis porque a mídia brasileira não é respeitável.

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