Cinco continhos e uma crônica de Natal

Cinco continhos e uma crônica de Natal

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A grande metamorfose (1)



Dedivaldo estava cansado. Queria rasgar a roupa e sair pelo mundo como um homem livre. Muitas vezes, em noites de insônia, dissera a mulher que um dia arrancaria a máscara e assumiria os seus desejos. Ao menos, repetia com voz embargada, uma vez. A esposa limitava-se a afagar-lhe os cabelos ou a dizer que aquilo não passava de uma fantasia. Dedivaldo era homem cordato, trabalhador, torcedor pacato do Ameriquinha, esse tipo de homem que não faz mal a ninguém, salvo a si mesmo. Mas também nunca se fez um mal maior, devastador, terrível. Como tudo em sua vida, organizada e rotineira, até o mal seu era menor. Era isso que o aborrecia profundamente.

Pode até parecer inverossímil, mas Dedivaldo sonhava com algo mais forte. Não, repito, não era com um mal maior que ele sonhava. Era covarde o suficiente para não se imaginar em situações atrozes. Quando via na televisão esses traficantes ou assassinos famosos, com esse ar de ruminantes que os caracteriza, Dedivaldo estremecia. Esse estremecimento confundia a sua mulher, que, no fundo, não conhecia bem o marido. Afinal, estavam junto fazia somente 27 anos, tempo, evidentemente, insuficiente para se conhecer os desvãos mais escuros da alma de alguém. Há quem diga, por exemplo, que é na convivência e na familiaridade que se constroem os grandes mistérios. Será que cada um conhece mesmo quem dorme ao seu lado? Essa era a pergunta que se fazia a mulher do Dedivaldo. Pois ela mesma não sabia qual era o desejo secreto do marido.

Sabia apenas que ela guardava uma fantasia num baú. Sabia também que ele ficava furioso que chamassem o seu tesouro escondido de fantasia. A filha mais velha de Dedivaldo, que tinha espírito mais cartesiano, um dia perguntou para a mãe: “Será que papai é gay e esconde uma fantasia de Mulher Maravilha nessa baú sempre chaveado?” A mulher se ofendeu: “O pai de vocês é macho. Ninguém sabe melhor disso do que eu. Cinco filhos são uma boa prova disso, não?” A filha ia dizer que não, mas, pragmática, silenciou. A filha mais nova, espírito especulativo por excelência, ponderou: “A alma humana é complexa. Talvez papai esconda no armário um desejo absolutamente normal para outros”. Assim se passaram os anos. Dedivaldo sempre tristonho, calmo e sonhador.

Todo carnaval a mulher do Dedivaldo se inquietava e redobrava as medidas de segurança. Temia que Dedivaldo se mandasse. Era uma atitude bizarra da parte dela, pois Dedivaldo não gostava de samba e nem sequer via o carnaval na tevê. Nem as imagens das mulheres seminuas na telinha o arrancavam do seu eterno cochilar. Na verdade, Dedivaldo vivia em casa ou, como se diz, de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Se tivesse pay-per-view dos jogos do América talvez nunca mais saísse aos domingos. Será que Dedivaldo sonhava em ser técnico de futebol? Impossível. Ele costumava desdenhar dos treinadores. Só João Saldanha merecera a sua admiração. Por ser comunista e por não ter cedido às pressões do general Médici que pretendia escalar o seu time.

Em 24 de dezembro de 2007, Dedivaldo abriu o seu baú com certa solenidade. Olhou as peças com carinho. Vestiu a roupa guardada ali por muitos anos e caiu no mundo. Até hoje, não voltou. Nem deu notícias. Uma vizinha jura tê-lo visto no elevador de serviço do prédio vestido de Papai Noel. Ninguém acreditou. Outro vizinho, grande viajante, desses que fazem a volta ao mundo em excursões, garante ter passado por ele numa aldeia da Lapônia.

*

Presente de Natal (2)



Ei, vamos tomar uma cerveja que esta roupa de Papai Noel está me deixando louco de calor.

— Hã... Vamos. Acho que o ar deste centro comercial não funciona bem. Também com esta barba e este mormaço...

­— Estou sem ar...

— O patrão não vai reclamar?

— Não tem criança agora.

— Salta uma estupidamente gelada.

— Pré-congelada.

— Melhor tirar a barba para beber.

— Também vou me pelar.

— Mas, agora te vendo sem barba, eu te conheço: Chico da Dona Joaquina.

— Paulinho do Seu Ari do Armazém.

— Eras um pau de virar tripa.

— E tu eras gordo e vivias enchendo o saco dos outros.

— É. Muita coisa mudou.

— Às vezes, eu penso nisto. Afundei.

— Na cerveja?

— Não. Na vida.

— Tu não ias ser jogador de futebol?

— Ia. Mas ninguém me deu bola na capital.

— Chutavas muito bem de esquerda, um canhão.

— É. Era minha especialidade. Agora é só bico. Tu só jogavas por ser o dono da bola. No resto, era uma seleção.

— Um combinado.

— Uma orquestra.

— Uma charanga.

— Tinha muita gente com nome de jogador naquele nosso time.

— Joel, Nílton e Bebeto.

— Platibanda, Nico e Marli.

— Marli não. Isso é nome de biba. Platibanda, Nico e Gessi.

— Não se dizia biba na época.

— Tudo evolui.

— De tanto pensar, eu me afundo.

— Na vida?

— Na cerveja.

— Que foi que deu errado?

— Isto.

— A cerveja?

— A vida.

— E a tua irmã? Era linda.

— Casou com um jogador de futebol.

— Rico?

— Não. Da terceira divisão. É reserva de Papai Noel em outro shopping.

— Eu era gamado nela.

— Não se diz mais gamado.

— Está bom, vidrado. Continuo o mesmo. Vou devagar.

— Na cerveja?

— Na vida.

— Não ias ser médico?

— Sou.

— E que estás fazendo aqui de Papai Noel?

— Diminuindo o estresse.

— Sem papo. Andas de saco cheio?

— Não. Eu vinha da escola da minha filha quando me chamaste para tomar uma cerveja.

— Boa essa! Dá um abraço. Posso te ajudar em alguma coisa?

— Me fala mais daquele nosso time. No ataque, tinha Duda, Maninho e Sadi. Lembra daquele gol antológico que eu tomei?

— Não lembro.

— Aquele de escanteio.

— Lembro de um do meio do campo.

— Não lembro.

— Apesar de gordo e frangueiro, eras um bom goleiro. Quero dizer, tinhas potencial.

— Eu era o dono da bola.

— Outra estupidamente gelada.

— Pré-congelada.

— Ah...

— A vida?

— Sim. A vida.

— Vamos passar o Natal juntos.

— Não posso. Sou Papai Noel. Estou de serviço.

— Eu te ajudo, amigo velho.

— Teu saco está cheio. Cuidamos dele primeiro. Depois mergulhamos de cabeça.

— Na cerveja?

— Na vida.

*

Vilma esperando o Natal em Palomas (3)



Aconteceu em 1975. Vilma raspava latas, em Palomas, e esperava a tempestade passar. Mas eram dias de sol e muitos não entendiam o que ela dizia. Ela não se importava. Sabia do que estava falando. As pessoas davam de ombros. Afinal, Vilma era meio louca. Enquanto raspava latas em pedras, a mulher previa o futuro e jurava que a longa noite chegaria ao fim. Vilma costumava ficar meses inteiros à janela do seu casebre vendo o tempo fluir. Não incomodava os outros. Só os confundia um pouco com as suas impertinências.

Naquele dezembro, porém, Vilma saiu do seu isolamento. Deu para fazer discursos. Passou a usar termos que nem ela conhecia. Transfigurou-se. Resolveu lutar contra o Papai Noel. Isso mesmo, perdeu o saco com Papai Noel. Foi de casa em casa propondo uma greve contra o Bom Velhinho. Na frente do armazém, esganiçou-se defendendo três atitudes de combate: nenhum sapato nas janelas à espera de presentes; nenhuma carta; nenhuma chaminé aberta. Esta última recomendação causou ainda maior estranheza. Em Palomas, não havia chaminés. Somente canos de fogão a lenha. As crianças ficaram apavoradas e começaram a correr atrás da mulher gritando: “Bruxa, bruxa...” Nada a fez parar. Nada.

Por volta do dia 21 de dezembro, Vilma subiu no tronco de um umbu e fez uma espécie de pronunciamento radical: acusou o Papai Noel de ser um agente do capitalismo selvagem, de fomentar o consumismo desbragado, de ser garoto-propaganda das agências de publicidade, de privilegiar os ricos e de causar ressentimento nos pobres. Ninguém sabia o que era “garoto-propaganda” nem agência de publicidade. Os mais cultos ainda falavam em reclames. Ainda assim, entenderam que Vilma estava chutando o balde.

Não bastasse isso, ela afirmou que Papai Noel pervertia o espírito do Natal, transformando tudo em mercadoria e deixando de lado a mensagem de paz, de amor e do próprio significado do nascimento de Cristo. Fechou o tempo. Vilma, então, muito séria, propôs um Natal sem presentes. Foi um choque. Como sem presentes? Um Natal em que cada um daria abraços, beijos e outros carinhos. Nada mais. Um Natal em que se rezaria, se festejaria e se distribuiria muita alegria. Chamou isso de Natal puro. Propôs até um desafio: quem presentearia o maior número de beijos e de abraços na noite do 24 para 25 de dezembro.

A reação foi imediata. O dono do armazém tentou agredi-la. Agarrado pelas bombachas, berrou: “Tu não sabes, sua vaca, que isso movimenta a economia?”. Vilma fez uma careta. Estava falando de sentimentos puros, não de negócios. As crianças, estimuladas pelas mães, redobraram o coro: “Bruxa, bruxa...” A adolescente Aninha fez um muxoxo: “E a minha minissaia? E o meu disco dos Beatles?” Alguns pais até que aplaudiram a idéia, pois gostariam de economizar uns pilas ou não sabiam o que comprar para as esposas. Dona Mariana, matriarca da vila, partiu para o ataque com seus argumentos proverbiais: “Isso é coisa de gente que não acredita em Deus”. Resolveram pedir a opinião do padre. Mas Palomas só recebia o pároco de vez em quando.

Quando alguns perceberam que Vilma começava a ganhar adeptos entre os hippies da chácara do Quincas e alguns pobres mais indignados, os notáveis do lugar decidiram negociar. Formou-se um comissão, integrada pelo estancieiro, pelo dono do armazém e pela presidente da liga das senhoras de bem, com o objetivo de convencê-la a abandonar a sua guerra ao Papai Noel. Todos falaram com moderação. Os argumentos foram simples: os benefícios para a economia, a tradição e os sentimentos transmitidos por meio dos presentes. Explicaram-lhe que o objeto deixa de ser mercadoria quando se transforma em presente, ganhando uma espécie de condição especial, nobre e pura. Algo assim.

Vilma não acreditou. Respondeu-lhes que aquilo era “enrolation”. Assim mesmo. Foi a gota d’água. Pediram a intervenção da polícia. O comandante do destacamento não teve dúvidas: fichou Vilma como comunista. As pessoas dividiram-se imediatamente em dois campos, o dos orgulhosos com o primeiro caso de comunismo explícito e fichado em Palomas, onde raramente acontecia algo politicamente importante, e os satisfeitos com a atitude eficaz do representante da ordem. Vilma passou o Natal na cadeia, onde recebeu presentes dos notáveis da comunidade.

No dia 26 de dezembro, foi solta. Por louca.

*

Ensaio sobre o Papai Noel (4)



– Deu pra mim. Larguei. Vou pendurar as chuteiras. Fui.

– Papai Noel, o senhor não pode fazer isso.

– Estou estressado, saturado, de saco cheio.

– Que bom, Papai Noel. Então é só distribuir tudo por aí.

– Estou de saco cheio, menino, mas de sacola vazia. A crise financeira internacional me pegou. Além disso, estou cansado dessas viagens perigosas ao Brasil. Uma bala perdida matou uma das minhas renas. É cada vez mais difícil ter acesso às casas, todas gradeadas. Até na chaminé tem grade. Já fui sequestrado nove vezes.

– Puxa, Papai Noel, mas o senhor é muito importante para nós. Natal sem o senhor não vai ter graça. Por favor...

– Hummm. Não tenho mais saco. Ninguém acredita em mim.

– Eu acredito. Meus amigos acreditam. Vovó também...

– Qual é a tua idade, guri?

– Seis anos, Papai Noel.

– Logo vi.

– Por favor, Papai Noel, precisamos tanto do senhor...

– Não adianta insistir. Vou largar. Não agüento mais passar tanto calor com essa roupa pesada, essa barba incômoda e toda essa tralha adequada ao frio. Por que não posso andar de calção, de sunga, de camiseta? Fizeram churrasquinho de uma das minhas renas e ainda venderam como se fosse lombinho canadense. Vou me aposentar.

– Ora, Papai Noel, é melhor pensar bem. Vovô me disse que a aposentadoria do INSS é uma merrequinha. E que ele morre de tédio sem nada para fazer. Já pensou até em ser Papai Noel voluntário numa escola aqui do bairro.

– Não adianta. Vou vazar. Cansei de ser um instrumento do consumismo desenfreado. Exploram a minha imagem como garoto propaganda de tudo quando é bugiganga, não me pagam coisa alguma e ainda desvirtuam a minha mensagem.

– Não, Papai Noel, não é assim. Minha mãe é psicanalista. Meu pai é publicitário. Eles discutem muito sobre a sua imagem. Sei do que estou falando. Já fui a vários congressos com eles. O seu papel é fundamental para a formação dos nossos valores e para a nossa imaginação.

– Você é muito precoce, menino. Não sei se faz bem para uma criança ter pai publicitário e mãe psicanalista.

– Por favor, Papai Noel, não nos abandone, cumpra o seu papel. O Senhor é tudo para nós no Natal.

– Eu não sou Jesus Cristo. Eu não sou Deus.

– Eu sei, Papai Noel, todo mundo sabe, até minha irmã de três anos já sabe disso, mesmo sendo meio esquisita. Se a gente fala em presentes, ela pega logo a carteira do papai e ri. O senhor não é Deus, mas é um santo.

– Santo de casa não faz milagres...

– O senhor é globalizado e faz milagres por toda parte.

– Menos, guri, menos, sem etnocentrismo, pelo amor de deus. Tem gente no mundo que nunca ouviu falar em mim.

– Tudo bem, Papai Noel, pode ser, mas eu e milhões de crianças acreditamos no senhor. É o que importa. Vai querer nos decepcionar? Por que não faz terapia com a minha mãe? Isso que o senhor está sentindo é muito comum. Todo mundo tem crise existencial e profissional. Tem até uns remedinhos pra ajudar. Já tomou prozac?

– Está bem, menino, já me convenci. Vou continuar...

– Eba!!! Papai Noel, o senhor não existe!

*



Natal no Velho Oeste (5)



Esta é uma história insólita, acontecida no Velho Oeste, com um pistoleiro aposentado, Joe Le Loup, um descendente de franceses que se criou no Arizona e sempre quis apenas ser feliz. Menino, Joe ficava amigo dos peruzinhos, criados nas ruas do seu povoado, e opunha-se a que fossem mortos no Natal. A bem da verdade, Joe Le Loup foi o primeiro pistoleiro vegetariano da história. Na dura vida do Oeste, descobriu que a melhor defesa era o ataque. Começou matando homens para salvar os seus amigos perus. Não parou mais. Sempre havia uma boa razão para atirar e sempre que atirava sentia certo prazer.

Maduro, Joe Le Loup compreendeu que era muito fácil matar, mesmo que as razões fossem boas. Pensou em desistir. Durante toda a sua vida, em cada Natal, sonhara com a paz. Finalmente, aos 35 anos, tendo acertado as contas com todos os inimigos, depôs as armas. Joe não era capaz de sentir rancor. Esse era o seu mais grave defeito. Por causa disso, trazia muitas marcas de bala no corpo. Ficava amigo dos inimigos, que aproveitavam para alvejá-lo à queima-roupa. Salvavam-lhe os reflexos. Passaram-se sete anos sem que Joe Le Loup tenha sacado os seus revólveres. Diariamente, era provocado, insultado, desafiado. Resistia como um bravo em plena mansidão.

Às vezes, era todo o vilarejo que lhe pedia para voltar à ativa, em nome da justiça. Joe só queria esquecer os tiros que dera e, em muitos casos, admirava francamente os adversários de antes. Então, um velho gângster o provocou até desestabilizá-lo. Joe sacou seus canhões e disparou como nos velhos tempos. A fuzilaria escureu a tarde do Arizona. Quando parou de atirar, Joe montou em seu cavalo e abandonou a cidade. Antes, jogou os seus revólveres aos pés do xerife, que não tinha nenhuma razão para prendê-lo. A noite de Natal pegou Joe Le Loup em pleno deserto, a meio caminho entre duas cidades, cavalgando como um rei na solidão das trevas.

Viu três estrelas no céu que pareciam piscar para ele. Em seguida, passou o trenó do Papai Noel. Joe Le Loup chorou de felicidade. Pediu ao menino Jesus que lhe desse humildade para nunca mais levar a mão ao colt. Retirou-se para uma chácara onde se dedicou a criar perus, que ninguém podia matar. Os bichos morriam de velhice ou de doença. Joe Le Loup tornou-se uma lenda no Velho Oeste. Muitos sonhavam atirar como ele. Joe contemplava seus dedos longos e lamentava não ter sido pianista. Por quarenta e três anos, distribuiu livros e brinquedos no Natal. Depois, deitou na rede e dormiu.

*

Uma perda



Fiquei sabendo, com alguns meses de atraso, da morte da Dona Maria. Confesso que a notícia me abalou. Eu me lembro dela meio curvada andando no pátio situado à frente da sua casa. Parecia, 25 anos atrás, já, como se diz, entrada nos anos. A morte é essa coisa estranha tão familiar. Com o passar do tempo e da nossa idade vai aumentando incrivelmente a lista dos “nossos mortos”. A morte dos mais simples, como a Dona Maria, tem um aspecto mais impressionante do que, por exemplo, a morte de um Sócrates, cujos gols ficarão na memória de muitos – eu tinha 20 anos na Copa do Mundo de 1982 ­– ou em imagens que qualquer pessoa pode ver na internet. Sócrates, felizmente, vai continuar como que existindo entre nós. Dona Maria vai permanecer algum tempo nas lembranças dos seus poucos familiares – já não tinha muitos aqui, um sobrinho, se bem me lembro, quando a conheci – e de alguns amigos. Vai desaparecer como uma bolha de sabão.

Dona Maria, quando fomos amigos, morava numa ruazinha do Partenon, próximo da PUC. Depois se mudou e eu a perdi de vista. Era portuguesa. Sempre falava de uma filha moradora de Trás-os-Montes, que raramente lhe escrevia e nunca vinha visitá-la, de quem se orgulhava imensamente. Nada permitiria pensar que nos aproximaríamos. Eu era um jovem estudante de História e Jornalismo, anarquista, com o cabelo pela cintura, sem dinheiro no bolso e sempre com um livro embaixo do braço. Ela era uma senhora muito simples que gostava de bacalhau e sonhava em voltar para a terrinha. Uma vez me levou conhecer a Casa de Portugal. Nossa amizade começou num 23 de dezembro. Caía a tarde quente quando o portão da PUC, do lado da Bento Gonçalves, foi fechado. Eu pretendia ficar no meu quarto da rua Marista lendo durando o Natal. Mas meu bateu subitamente uma tristeza enorme. Saí perambulando meio catatônico. Passei diante da casa dela.

Quase tomei um banho de mangueira. Dona Maria estava molhando a calçada. Riu com o meu susto. Perguntou, como se me conhecesse, o que estava fazendo em Porto Alegre, se não ia para casa no Natal? Respondi que tinha decidido ficar, embora estivesse arrependido. Ela disse que sempre me via passar com os amigos e que sabia que eu estava ali na universidade. De repente, sem mais nem menos, falou assim: “Vai passar o Natal só naquele quartinho?” Acho que balancei. Ela se enterneceu: “Passa comigo, meu filho, vai, também estou só”. Passei. Dali em diante, sempre que a coisa andava difícil, eu filava a boia na Dona Maria. Quando tinha bacalhau, ela vinha me chamar. A temporada na Marista acabou e segui em frente sem me despedir da minha solitária e solidária amiga. Mas, vez ou outra, Lima, garçom de um boteco das imediações, outro amigo daqueles dias bicudos, me dava notícias dela.

Será que a filha soube da sua morte? Dona Maria morreu num abrigo para idosos, um asilo. Lima, agora aposentado, foi vê-la poucos dias antes da sua morte. Encontrei-o no saguão do Hospital de Clínicas. Fiquei pensando na Dona Maria como um pingo de água que se dissolveu na natureza. Mais tarde, será a nossa vez, disse o Lima. Saí de fininho. Queria chorar sozinho.

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