Como nossos filhos

Como nossos filhos

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A minha atração pelo cinema é fatal.

O passar do tempo do tempo me traz rotinas severas. Todo sábado, com ou sem chuva, salvo algum show imperdível ou viagem, estou no escurinho da sala de projeção. Não poderia perder “Como nossos pais”, filme brasileiro de Laís Bodanzky, grande vencedor do Festival de Gramado. É um bom filme. Sem ser ótimo. Quando vi o tênis all-star da protagonista, me desiludi de cara. O cinema brasileiro é feito por jovens de classe média alta que usam all-star. É o símbolo da estética arrojada, descolada e tendência.

Impossível ser artista de vanguarda, para usar um termo da velha guarda, sem all-star. O figurino masculino compõe-se de all-star e blazer. Pensei em sair do cinema. Nunca faço isso. Fiquei. Um filme contado do ponto de vista de uma pessoa que usa all-star não pode ser universal. “Como nossos pais”, esse bom filme, não alcança a universalidade por ser a história de um grupo social muito restrito com suas obsessões, terapias e conflitos um tanto esotéricos para o restante da população. Sim, claro, é o filme da mulher moderna de classe média que briga para ser artista, mãe, mulher, amante, acertar as contas com o passado, viver o presente, fixar o futuro. Sim, sim.

A história se passa em São Paulo, mas tudo lembra o Rio de Janeiro, do sotaque da atriz à malandragem estereotipadamente carioca do seu pai. Passei todo o filme com a sensação de estar no lugar errado, vendo imagens de São Paulo, mas esperando a todo momento que os personagens desaguassem no Leblon. É um filme profundamente Zona Sul. Por idas e vindas da trama, a protagonista joga seu all-star no lixo. Isso salva o filme. Mas não o cinema brasileiro contemporâneo. Se me contratassem como consultor, eu diria: menos all-star e mais chinelo de dedo ou sapato preto. Deve ser implicância minha. A temática é fundamental. As interpretações são boas. Desce redondo.

Qual o tema mesmo do filme de Laís Bodanzky? O casamento. Velha luta entre homem e mulher pela divisão das tarefas domésticas. Quem levanta para levar as crianças na escola? Quem limpa o leite derramado? O homem escapulindo. A mulher tentando dividir o bolo em fatias equivalentes. Como pano de fundo, o dilema: trair ou não trair? Mulheres traem e contam? Homens traem e negam até a morte? Homens fazem sexo, mulheres ainda fazem amor? Ou imaginar que mulher quer amor e homem apenas sexo fora do casamento é uma concepção machista?

“Como nosso pais” é uma boa obra sobre o comportamento dos “nossos” filhos. Foca uma geração dividida entre mais liberdade e mais egocentrismo. É a geração que coloca o pai na clínica e sai duas vezes por dia para passear com o cachorro. Velhos temas do pós-1968 voltam à cena com novas embalagens: casamento fechado ou casamento aberto? Como me disse um dia o psicanalista lacaniano Charles Melman, ambos têm um limite: a asfixia ou o ciúme. Qual a diferença entre passado e presente? Nenhuma. Ainda somos os mesmos. Salvo pelo all-star.

Terá sido por isso que a protagonista resolveu colocar o seu no lixo?

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